A União Europeia resgatará a Organização Mundial do Comércio, ameaçada pela sabotagem dos EUA. Bruxelas lançou uma iniciativa internacional para estabelecer uma via de arbitragem alternativa que impeça o colapso da OMC no final do ano se a administração de Donald Trump mantiver o atual bloqueio do organismo. O documento elaborado pela UE, ao qual o EL PAÍS teve acesso, afirma claramente a vontade de “preservar os princípios e os aspectos essenciais do sistema de resolução de conflitos da OMC”. O novo sistema será um reflexo exato da instituição com sede em Genebra.
Os responsáveis pela arbitragem do novo sistema, baseado no artigo 25 que regulamenta o da OMC, serão selecionados entre os árbitros atuais ou antigos da própria OMC. O documento, de acordo com o esboço do projeto, acrescenta que “todos os aspectos substanciais e procedimentais seguidos pelo Órgão de Apelação do organismo em perigo de morte serão reproduzidos da maneira mais exata possível”.
O organismo multilateral que põe ordem no comércio mundial desde 1985 dias está com os dias contados se a administração de Donald Trump mantiver sua recusa a renovar os membros do Órgão de Apelação, um elemento essencial para a resolução das disputas sobre tarifas, dumping ou concorrência desleal.
O Órgão de Apelação é a última instância à qual os membros da OMC podem recorrer quando um painel emitiu sua determinação sobre um conflito. Na prática, Bruxelas teme que as determinações deixem de ter valor porque poderiam ser sempre objeto de recurso a um órgão incapaz de resolver o conflito por falta de membros. A irrelevância da OMC seria a consequência inexorável.
O plano europeu para evitar o colapso do organismo, que foi revelado pela Reuters na semana passada, foi discutido paralelamente à reunião de ministros do Comércio do G20 realizada neste fim de semana em Tsukuba (Japão). Os EUA, segundo fontes presentes na reunião, impediram que o modelo alternativo de arbitragem fosse incluído nas conclusões do encontro, que se limitaram a afirmar que “é necessário agir em relação ao sistema de resolução de conflitos”.
Apesar do veto norte-americano, a iniciativa europeia parece ter conquistado o apoio de importantes membros da OMC, como Índia, Rússia, Canadá e Turquia. Os países que aderirem ao plano assinariam um acordo bilateral pelo qual se comprometeriam a acatar a decisão da arbitragem. A via alternativa, de acordo com o texto do acordo ao qual o EL PAÍS também teve acesso, seria implementada assim que o órgão de apelação da OMC ficar com menos do que os três membros imprescindíveis para o seu funcionamento.
Esse comitê de apelação da OMC é composto por sete membros e cada caso é atribuído a três deles por rotação. Os EUA bloquearam a substituição dos quatro membros cujo mandato expirou em 2017, razão pela qual conta com apenas três. E em dezembro expira o mandato de outros dois membros (EUA e Índia) e só restaria um (da China), o que significa que a OMC ficaria de fato inutilizada.
A Administração Trump impõe como condição para levantar o bloqueio uma reforma das normas da OMC para adaptá-las à realidade de um século XXI em que a China, com um sistema comunista baseado em subsídios públicos e indústrias reguladas, se tornou uma grande potência nos mercados capitalistas.
Um sistema ‘à la carte’
A UE compartilha o objetivo, mas teme que a ofensiva de Trump provoque o colapso da OMC antes que possa ser reformada. “Os EUA querem um sistema à la carte no qual possam aproveitar a parte que lhe interessa sem aceitar nenhum limite aos seus interesses”, lamenta uma fonte europeia.
As críticas dos EUA ao mecanismo de arbitragem da OMC são anteriores a Trump. Washington acusou repetidamente o Órgão de Apelação de ir longe demais em suas decisões e exceder os prazos previstos (90 dias) para seus pronunciamentos sem prolongar até o final as consultas às partes afetadas pelo conflito.
Algumas críticas norte-americanas são compartilhadas por outros membros. A UE, juntamente com a China, a Índia e o Canadá, apresentou propostas para levar a cabo as reformas necessárias. Mas Trump, com sua habitual tática de negociação, tomou como refém a peça-chave da OMC para impor suas condições à possível reforma.
A preocupação neste lado do Atlântico também aumenta porque há dúvidas sobre a verdadeira intenção da administração norte-americana, cujas queixas não parecem estar acompanhadas por uma autêntica vontade de reformar o Órgão de Apelação. A Europa considera desproporcional a decisão de Washington de impedir a nomeação de novos membros, um bloqueio que parece buscar mais a extinção do organismo do que sua reforma.
A OMC, sucessora do GATT (Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio), nasceu em 1995 depois de mais de oito anos de negociações na chamada Rodada do Uruguai. Ao contrário do GATT, que cobria apenas o comércio de bens, a OMC abarcou também os serviços. Atualmente, conta com 164 membros, representando 98% do comércio mundial. Desde 1995, mais de 500 conflitos foram levados ao organismo e mais de 350 resoluções foram emitidas.