Centenas de milhares de mortes, destruição generalizada, miséria e um êxodo populacional gigantesco, que atingiu metade da população do país. Enfim, uma tragédia humanitária de proporções colossais. Ao completar 10 anos, a guerra na Síria se confirma como um dos conflitos mais terríveis do começo deste século. Nos últimos tempos, os combates diminuíram de intensidade, mas as feridas continuam abertas e não se vê no horizonte a possibilidade da volta à paz.
Iniciada na esteira da Primavera Árabe, que sepultou ditaduras no poder há várias décadas, o conflito sírio, no primeiro instante, parecia que ia fazer o regime de Bashar al-Assad também desmoronar. Mas, de lá para cá, o ditador, de 55 anos, continua no poder, contra tudo e todos.
Às custas da guerra e de uma tutela estrangeira, Assad completou completou 21 anos à frente de um país em ruínas, exercendo uma soberania limitada em um território fragmentado por potências internacionais, sem qualquer perspectiva de reconstrução ou reconciliação. E avança para uma nova eleição presidencial praticamente ganha diante de uma oposição em frangalhos, debilitada pelas lutas internas e no exílio.
“Pedíamos a liberdade e a democracia em Tunísia, Egito e Líbia, mas nossos slogans eram (de fato) para a Síria”, conta o militante Mazen Darwiche, de 47 anos, de seu exílio, em Paris. “Estávamos cegos pela ideia de acender esse pavio que faria chegar a nossa vez. Quem seria o Buazizi sírio?”, lembrou, em alusão ao jovem vendedor ambulante que ateou fogo ao próprio corpo e desatou a revolta tunisiana.
Estopim – Na Síria, foi um grupo de jovens em Daraa que deu o pontapé no confronto, com uma mensagem pintado no muro de uma escola: “A sua vez chegou, doutor”. Era um recado a Al-Assad, oftalmologista de formação, a quem desejavam um destino similar ao do ditador tunisiano Abidin Ben Ali, forçado a se exilar, ou ao do líbio Muammar Kadhafi, linchado pelos rebeldes.
Foi a senha para a repressão do regime. A partir de então, jovens sírios foram detidos e torturados, provocando indignação e incentivando protestos maciços. Em 15 de março de 2011, a mobilização se espalhou por todo o país com manifestações simultâneas.
O preço pago pelos sírios, porém, tem sido mais do que alto, exorbitante. Em uma década, cerca de 400 mil pessoas morreram, segundo o Observatório Sírio de Direitos Humanos (OSDH), com sede no Reino Unido, que realiza um incansável trabalho de documentação. A maioria das 117 mil vítimas civis morreu nas mãos do regime.
O grau violento da repressão surpreendeu, inclusive, os opositores mais obstinados. “Nunca pensei que alcançaria tamanho nível de violência”, admite Darwiche, detido em 2012, preso por mais de três anos e torturado. “Mas me enganei”, completou.
De acordo com levantamentos, metade da população de antes da guerra — 22 milhões de habitantes — fugiu do país, no maior deslocamento provocado por um conflito deste a Segunda Guerra Mundial. Parte desses sírios vive em acampamentos miseráveis em seu próprio país. Outros, mais de 5 milhões, optaram pelo exílio, expondo-se aos riscos da travessia do Mediterrâneo. Dirigindo-se às portas da Europa, que resiste a recebê-los, os refugiados influenciam o debate político em vários países.
Alheio às sucessivas condenações internacionais, o regime de Al-Assad recorreu a armas químicas para aniquilar os bolsões de resistência, a barris de explosivos atirados do ar em bairros residenciais e a táticas medievais de sítio para matar de fome os redutos rebeldes.
Sequer hospitais ou escolas foram poupados dos bombardeios aéreos. Bairros inteiros de Aleppo, antigo centro econômico e industrial do país, foram arrasados. Assim como sua cidade antiga e seus históricos souks (mercados árabes), classificados no patrimônio mundial da Unesco.
Extremismo – O caos permitiu a expansão fulgurante de uma das organizações mais sanguinárias da história do jihadismo moderno, o grupo Estado Islâmico, que proclamou em 2014 um califado em terras conquistadas entre a Síria e o Iraque.
A violência desenfreada do EI e sua capacidade de atrair combatentes da Europa incitaram o medo nos ocidentais, que deixaram de lado o entusiasmo prudente que o levante sírio tinha provocado. A atenção internacional se voltou para a luta antijihadista, em detrimento dos rebeldes que combatiam as forças de Assad. “Éramos muito inocentes quando começamos a renovação”, admite Darwiche, um dos fundadores dos comitês de coordenação, criados para sustentar a revolta.
No pior momento, o regime só controlava um quinto do território e os rebeldes estavam às portas de Damasco, seu reduto. A intervenção do Irã e do Hezbollah libanês, e sobretudo do exército russo depois ao lado de Assad, mudou completamente o jogo. Atualmente, o regime controla cerca de dois terços do território, que abrange as principais metrópoles. Mas enormes regiões ainda estão fora do seu controle. Este mês começou a vigorar uma trégua com o regime, respeitada globalmente.