Em visita a Brasília, chanceler admite que aliança de Netanyahu com ultradireitistas complica negociações de paz e critica aproximação de Israel com países árabes. Eleição de Lula é vista como chance para retomar relações estagnadas com o Brasil
Rodrigo Craveiro- Correio Braziliense
Em visita a Brasília, onde participou da posse de Luiz Inácio Lula da Silva, Riad Al Malki — ministro das Relações Exteriores e dos Expatriados da Palestina — recebeu o Correio, ontem, para uma conversa de 40 minutos, na embaixada.
Durante a entrevista, que contou com a presença do embaixador Ibrahim Alzeben e a tradução da intérprete Jihan Arar, Al Malki mostrou ceticismo em relação a uma eventual retomada das negociações de paz com Israel e a uma mudança de postura do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, empossado à frente de um gabinete formado pela ultradireita e por judeus ultraortodoxos.
“Nós acreditamos que o novo governo de Netanyahu representa o tumulto, a falta de respeito às leis, o derramamento de sangue e o não cumprimento da ordem”, afirmou.
O chanceler de 67 anos admitiu que o estabelecimento de laços entre Israel e países árabes — dentro dos chamados Acordos de Abraão — prejudica, de forma direta, uma solução para o conflito no Oriente Médio. “Como é que os Acordos de Abraão vão ajudar a resolver o problema na nossa região se eles não se concentrarem na defesa de nossa causa palestina?”, questionou.
Al Malki também reconheceu fraturas internas entre os movimentos Hamas e Fatah. Sobre o Brasil, o ministro saudou o papel de Luiz Inácio Lula da Silva nos dois mandatos anteriores. “Quem estabeleceu os alicerces para essa relação consolidada e forte entre Brasil e Palestina foi o presidente Lula”, destacou. O chanceler palestino esteve com o homólogo brasileiro Mauro Vieira, durante a solenidade de posse. “Ele me disse que a Palestina pode confiar no Brasil”, relatou.
No sábado, Al Malki, Alzeben e membros do Conselho de Embaixadores Árabes plantaram uma oliveira diante do prédio da Embaixada da Palestina. A árvore simboliza a paz. Al Malki embarca de volta para a Palestina na sexta-feira. “Eu deixarei o Brasil bastante confortável e feliz por tudo o que vi”, declarou.
O premiê Benjamin Netanyahu foi eleito para comandar o governo mais à direita da história de Israel. O que os palestinos esperam disso?
Ao longo de 16 anos, durante os governos anteriores de Netanyahu, nós, como palestinos, nunca ouvimos sequer uma proposta sobre a solução de dois Estados ou um posicionamento sobre as negociações de paz. Ao longo desse tempo, intencionalmente, Netanyahu agrediu o povo palestino e os seus direitos.
Ele rejeitou as negociações e o reconhecimento da solução de dois Estados. Durante os seus governos, intensificou-se a construção de assentamentos ilegais e ilegítimos nos territórios palestinos, por parte de Israel. Sem contar com os assassinatos, a destruição de casas, as ações ilegais. Ideologicamente, Netanyahu não aceita reconhecer os direitos do povo palestino.
O senhor crê em uma mudança de postura do governo de Israel?
O Netanyahu de hoje não difere em nada do Netanyahu que governou Israel durante 16 anos. Ele consolidou sua posição como ultradireitista ao estabelecer a presença da ultradireita no governo israelense. Netanyahu se esconde atrás dos ultradireitistas de seu governo para que cumpram com a agenda que ele não conseguiu consolidar. Não só do ponto de vista palestino, mas também do israelense, acredita-se que Netanyahu vai destruir ou sabotar o “sistema democrático israelense”.
Vai sabotar a independência e a autonomia do Judiciário israelense. Existem vários processos na Justiça contra Netanyahu que se referem a propinas e à corrupção dentro do governo. Além de recrutar civis para que ocupem os territórios palestinos, e isso vai contra o direito israelense. Esperamos da comunidade internacional que esgote as possibilidades para proibir Netanyahu de adotar os passos que anunciou dentro dos territórios palestinos ocupados. Nós, como palestinos e como lideranças palestinas, acreditamos que o que está por vir será uma fase muito complicada, muito difícil.
Ao ser empossado, Netanyahu traçou como prioridade a expansão dos assentamentos judaicos na Cisjordânia…
Netanyahu afirmou que o povo israelense tem direito absoluto sobre os territórios palestinos. Também anunciou que intensificará a construção de assentamentos ilegais e ilegítimos dentro dos territórios palestinos, especialmente na Cisjordânia e em Jerusalém Oriental. Agora, as organizações não governamentais israelenses adotam ações para modificar o caráter legal e histórico do status quo da Mesquita de Al-Aqsa. Até o ex-premiê (Yair) Lapid alertou para esse tipo de ação.
Outras autoridades israelenses, além de ex-premiês, alertaram que esse tipo de passo pode levar a uma nova intifada (levante palestino). Acreditamos que o novo governo de Netanyahu representa o tumulto, a falta de respeito às leis, o derramamento de sangue e o não cumprimento da ordem. A comunidade internacional deve impedir que isso ocorra. No entanto, todos sabemos que ela precisa de quem a movimente.
Os Acordos de Abraão assinados por Israel com países árabes são prejudiciais à causa palestina?
Eles prejudicam, de forma direta, a causa palestina. Primeiro, a iniciativa de paz árabe, promulgada pela Cúpula Árabe de 2002, prevê que a paz com Israel somente poderá ser alcançada depois da retirada israelense de todos os territórios palestinos e árabes, e não antes disso. Por isso, essa iniciativa de paz árabe prevê, passo a passo, todas as ações que devem ser adotadas, antes de ser alcançada a paz com Israel. Começa pela retirada dos territórios palestinos e árabes. Netanyahu dizia que queria inverter esses passos. Que ele queria começar pela paz com os países árabes sem sequer se retirar dos territórios. Os Acordos de Abraão vão de encontro ao que Netanyahu queria, e não à iniciativa de paz árabe.
Depois que Netanyahu assinar o acordo de normalização das relações com os países árabes, quem fará pressão? Se eles não colocarem como pré-condição a retirada de Israel dos territórios palestinos e árabes ocupados, não haverá possibilidade de exercerem essa pressão depois de os acordos terem sido assinados. Qualquer ampliação dos acordos significará que a Palestina ficará sozinha. Como convenceremos Netanyahu a sentar à mesa de negociações para alcançar o acordo de paz entre a Palestina e Israel? O problema é entre palestinos e israelenses. O problema não está entre Israel e os Emirados Árabes Unidos. Não é entre Israel e o Bahrein, ou entre Israel e o Marrocos. Como os Acordos de Abraão ajudarão a resolver o problema na nossa região se não se concentrarem na defesa de nossa causa palestina?
Qual a perspectiva da retomada de negociações de paz?
As perspectivas de se sentar e negociar são quase inexistentes, nulas. Até mesmo antes dos Acordos de Abraão, Netanyahu tinha se recusado a sentar-se à mesa de negociações. A situação ficará mais difícil. Muito antes de Donald Trump declarar que Jerusalém era a capital eterna de Israel e de transferir a embaixada para lá, Netanyahu rejeitava sentar-se à mesa de negociações. Imagine agora. Com o governo de coalizão formado por extremistas de ultradireita, fascistas e odiadores de árabes, a volta à mesa de negociações será muito mais difícil.
A possibilidade de isso ocorrer, por iniciativa de Netanyahu, é completamente nula. A iniciativa deve partir da comunidade internacional, com duas situações para cumpri-la. A primeira seria uma decisão coletiva do Conselho de Segurança da ONU que tenha força de imposição para que Israel se sente à mesa de negociações. A segunda seria que o governo americano adote a posição de impor a Israel que se sente à mesa e, caso não o faça, sofra consequências com medidas punitivas.
Esse cenário é algo credível?
Claro que não é possível. Sabemos da posição de todos os governos dos EUA de proteger Israel e de impedir quaisquer medidas punitivas. A administração norte-americana sempre ameaça usar o poder de veto no Conselho de Segurança contra qualquer resolução que preveja a punição de Israel. O que pode fazer com que a administração americana mude de posição é a sociedade.
A pressão deve ocorrer de baixo para cima. É isso que começamos a fazer dentro dos Estados Unidos, por meio das organizações da sociedade civil, das federações de estudantes nas universidades, das igrejas, dos sindicatos trabalhistas, das minorias — como os negros e hispânicos — e das atividades das comunidades palestinas, tanto nos EUA quanto na América Latina. Há uma necessidade de adesão dessas pessoas nos partidos políticos americanos e de apoio aos representantes no Congresso que avalizam a causa palestina.
Para que haja uma mudança do Capitólio em relação ao tema. Reconheço que esses são passos longos e que demandam muito tempo. Acreditamos que esse é o caminho mais garantido e que nos fará alcançar o objetivo desejado. É o caminho para mudar o ritmo da atuação dentro da administração americana. A nova composição do governo israelense vai obrigar a administração americana a rever a forma como lida com alguns dos elementos que compõem esse novo gabinete de Israel.
Analistas apontam um racha entre o Hamas e o Fatah. Até que ponto isso pode ser prejudicial?
Reconhecemos que há um racha existente entre nós desde 2007. Isso afetou, de forma substancial, a causa palestina nos fóruns regionais e internacionais. Reflete divisão dentro do cenário palestino, o que fragiliza a nossa posição e dá oportunidade a Israel para usar isso a fim de não se sentar à mesa de negociações. O problema real não está no racha entre Fatah e Hamas. Isso pode ser resolvido por meio das eleições.
Elas definem quem deve governar. O problema está nas interferências externas no Hamas. O movimento é o braço palestino do movimento da Irmandade Muçulmana. A Irmandade Muçulmana internacional se utiliza do Hamas para impor suas posições e a sua visão da causa palestina. Todas as vezes que as lideranças do Hamas e do Fatah se sentam para negociar, e se coloca essa posição para a Irmandade Muçulmana internacional, imediatamente ela é mudada.
O senhor enviou à Corte de Haia denúncias de crimes de Israel contra crianças palestinas…
Israel comete crimes contra a população palestina. Os crimes contra crianças palestinas são os piores, os mais perigosos e os mais dolorosos para nós. Apresentamos as denúncias não somente ao Tribunal Penal Internacional, mas também às Nações Unidas. Há uma lista de países, chamada de “lista da vergonha”, que mostra os exércitos que cometem violações contra crianças. Relatórios mostram que o Exército israelense é responsável por graves violações contra crianças palestinas, como assassinato, prisão e desrespeito aos direitos.
Os relatórios que levamos ao conhecimento do secretário-geral da ONU apontam a gravidade e a monstruosidade desses números. Os documentos pediam que o Exército israelense fosse incluído na “lista da vergonha”. Infelizmente, o secretário-geral não aceitou. Por isso, decidimos levar os relatórios ao Tribunal Penal Internacional.
A eleição de Lula é uma correção da política externa brasileira em relação aos palestinos?
As relações entre Palestina e Brasil sempre foram históricas, firmes e consolidadas. Quem estabeleceu os alicerces foi o presidente Lula. Durante seus mandatos, ele sempre apoiou a causa palestina e os direitos do povo palestino, principalmente o direito à sua pátria e à autodeterminação, sua liberdade e sua independência. Foi ele quem adotou a posição de reconhecer o Estado da Palestina. Durante os mandatos de Lula, e depois de Dilma Rousseff, as relações se desenvolveram bastante, avançaram e se consolidaram.
A posição do Brasil sempre influencia a de outros países no continente e no cenário internacional. Esperamos do presidente Lula que ele retome as relações do ponto em que elas pararam anteriormente e que nos recompense, como palestinos, por tudo o que perdemos nos últimos quatro anos. Isso foi o que nós ouvimos do presidente Lula, ontem (domingo), quando disse que o Brasil se posicionará com a Palestina e apoiará os direitos do povo palestino.
Foi o que ouvi do chanceler Mauro Vieira. Ele me garantiu que, a partir de hoje, o Brasil votará a favor dos palestinos nos fóruns internacionais. Também me disse que a Palestina pode confiar no Brasil. Eu deixarei o Brasil bastante confortável e feliz por tudo o que vi. Esperamos um acaloramento das relações entre Palestina e Brasil. Que o Brasil volte a ser um país forte e que abrace a causa palestina.
Na gestão de Jair Bolsonaro, as relações se estagnaram?
Não sentimos qualquer tipo de calor humano ou de disposição do governo Bolsonaro de apoiar a causa palestina. Era um governo que fugia do diálogo e das responsabilidades internacionais sobre o tema. Todas as vezes, reafirmava o posicionamento em favor de Israel. Inclusive, apoiava a posição israelense contra nós. Vimos isso quando Netanyahu veio para a posse de Bolsonaro, em 2019. Vimos isso quando Bolsonaro anunciou que transferiria a embaixada de Tel-Aviv para Jerusalém.
Vimos isso quando vimos que o filho de Bolsonaro (Eduardo Bolsonaro) visitou os assentamentos ilegais, violando o direito internacional. Vimos isso em todas as oportunidades que Bolsonaro teve de fazer declarações de apoio a Israel, negligenciando a existência dos palestinos. Não fomos nós que prejudicamos as relações entre a Palestina e o Brasil. Foi o Bolsonaro, que, intencionalmente, quis prejudicar essas relações.