Até pouco tempo atrás, a causa palestina era praticamente unânime no Oriente Médio e no mundo muçulmano. À exceção de Egito e Jordânia, todos os países árabes denunciavam a ocupação de Israel, visto como inimigo comum. Na última terça-feira, em evento na Casa Branca, os chanceleres Abdullah bin Zayed bin Sultan Al Nahyan (Emirados Árabes Unidos) e Abdullatif bin Rashid Al Zayani (Bahrein) assinaram, com o primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, um pacto para a normalização de relações. Os chamados Acordos de Abraão foram mediados pelo presidente norte-americano, Donald Trump.
Os palestinos reagiram com indignação à ofensiva diplomática. O líder Mahmud Abbas advertiu que “não haverá paz, segurança ou estabilidade” no Oriente Médio enquanto durar a ocupação. O movimento fundamentalista islâmico Hamas advertiu que “a força de ocupação pagará o preço de qualquer agressão contra nosso povo ou locais de resistência”. A aliança entre Israel, Emirados Árabes Unidos e Bahrein aponta para nova mudança de prioridades na região.
Professor de relações internacionais da Universidade de Nova York, o iraquiano Alon Ben-Meir entende que a dinâmica da geopolítica no Oriente Médio mudou de forma dramática e irreversível. “A partir de agora, haverá uma tremenda pressão sobre os palestinos para encontrarem a maneira de retornar à mesa de negociações com Israel, numa conjuntura em que perderam muito do apoio árabe”, disse ao Correio. “Nenhum outro país é capaz de ajudá-los na aspiração de uma solução baseada em dois Estados”, acrescentou. Ele aposta que Omã e Sudão serão as próximas nações árabes a se aproximarem de Israel. “Os palestinos foram deixados à própria sorte para encontrarem o caminho de volta à mesa de negociações , caso queiram pressionar uma paz com Israel baseada na solução de dois Estados autônomos”, lembrou Ben-Meir.
O norte-americano Richard Falk — professor de direito internacional pela Universidade de Princeton e ex-relator especial da Organização das Nações Unidas (ONU) para a Palestina Ocupada (2008-2014) — aponta que os Acordos de Abraão sugerem uma transformação em relação à percepção de ameaça regional. “Houve o deslocamento de Israel como adversário e inimigo, papéis agora preenchidos pelo Irã”, observou.
Traição – O estudioso não interpreta essa decisão dos Emirados Árabes Unidos e do Bahrein como uma traição à causa palestina, mas como um meio de abrir caminho para uma cooperação regional mais robusta na confrontação com o Irã. “O impacto disso para o Oriente Médio dependerá dos eventos prováveis para os próximos meses, como uma renovação da resistência palestina, e até mesmo algo da ordem de uma terceira intifada.”
Para Ibrahim Alzeben (foto), embaixador da Palestina em Brasília, o acordo tripartite assinado em Washington viola a Iniciativa de Paz Árabe endossada por todos os países árabes e islâmicos e pelo Conselho de Segurança da ONU. “Isso não trará paz e segurança, nem contribuirá para a solução do conflito israelense-palestino”, alertou o diplomata ao Correio (leia Depoimento). “Este acordo recompensa a instransigência de Israel, além de suas ações e políticas ilegais. O governo de Netanyahu está dizendo, abertamente, que não permitirá a existência de um Estado palestino soberano e viável, e continuará a expandir assentamentos e anexar terras palestinas”, acrescentou. O embaixador acredita que o acordo mediado por Trump “recompensa Israel por cometer crimes de guerra com impunidade”.
“O único caminho tangível é aquele que respeita os direitos inalienáveis do povo palestino, considera seu direito à autodeterminação e à independência, e reforça a ordem internacional baseada em regas, normas e resoluções”, sublinhou Alzeben. Ao ser questionado pela reportagem se os palestinos veem uma traição árabe, ele respondeu: “Prefiro usar a palavra ‘abandono’, em lugar de traição. Nós nos sentimos abandonados.” O embaixador palestino explicou que a conduta política de seu governo envolve a aposta na paz e o apelo à legitimidade internacional. “Nós iremos a todos os fóruns para conquistar nossos direitos. No terreno, seguiremos com a luta popular pacífica, mas não descartamos a desobediência civil. A luta pela independência é um processo que sempre culmina com o triunfo do direito e da razão”, disse.
“O mundo tolera um regime de apartheid”
Em entrevista exclusiva ao Correio, Saeb Erekat — negociador-chefe palestino e secretário-geral da Organização para a Libertação Palestina (OLP) — acusou Estados Unidos, Israel, Emirados Árabes Unidos e Bahrein de tentarem “normalizar” um regime de “apartheid” na Palestina. De acordo com ele, as duas nações árabes cometem o “engano” de atribuir ao Estado judeu a proteção à segurança regional. “Qualquer tipo de ameaça estratégica a um país árabe, independentemente de onde venha, deveria ser atendida com um consenso árabe”, afirmou, referindo-se ao perigo representado pelo Irã aos interesses regionais. Erekat acredita que a nova aliança forjada na Casa Branca afasta Israel de qualquer perspectiva de paz para o Oriente Médio.
De que maneira os acordos firmados entre Emirados Árabes Unidos, Bahrein e Israel podem prejudicar a causa palestina?
De várias maneiras, seus danos não deveriam ser subestimados. Esses acordos minam a Iniciativa de Paz Árabe e encorajam o governo israelense a continuar com seus crimes, pois os recompensa por isso. Os Emirados Árabes Unidos e o Bahrein reconheceram, de fato, a anexação ilegal de Jerusalém ocupada, por parte de Israel, e suas tentativas de mudar o status quo dos Locais Sagrados. Isso não pode ser considerado um passo rumo à paz.
A Organização para a Libertação da Palestina considera tomar alguma medida contra essas duas nações árabes?
Nós temos deixado nossa posição clara e veremos como a situação se desenvolve. O que nós sabemos, porém, é que ambos países não fazem mais parte do consenso árabe sobre a Palestina e que, agora, tomaram partido daqueles que tentam normalizar um regime de apartheid na Palestina.
O senhor vê um esforço dos países árabes de tentarem punir o Irã, mesmo “traindo” a causa palestina?
O Irã faz parte de nossa região maior e defendemos relações pacíficas, baseadas na não interferência em questões internas de cada Estado. O problema com alguns países árabes é que eles creem que podem encontrar entidades externas para proteger a segurança regional árabe, o que não passa de engano. O núcleo de sua normalização é a fórmula de pagar pela proteção; embora nenhum deles, nem os EUA e certamente nem Israel, vá à guerra por eles. Qualquer tipo de ameaça estratégica a um país árabe, independentemente de onde venha, deveria ser atendida com um consenso árabe e com um programa de doutrina de segurança que respeite a soberania de cada membro e garanta a proteção necessária. Israel nunca fará isso.
Quais as consequências de tais acordos para a geopolítica do Oriente Médio e as perspectivas de paz no futuro?
Israel, Bahrein e Emirados Árabes Unidos tentam criar uma nova aliança. Em relação ao processo de paz, isso basicamente afasta os israelenses. É a vitória do que Benjamin Netanyahu chama de “paz pela paz”, significando a normalização das relações para a normalização do apartheid.
Trump estimula essa aliança para isolar o Irã e ganhar votos do lobby israelense nos EUA. Como vê isso?
Eu acho que sua intenção vai além disso, visando os evangélicos extremistas nos Estados Unidos. Qualquer uso da religião para fins políticos, não importa a religião, é errado. Este é um dos aspectos da campanha do presidente Donald Trump. Seu governo enfraqueceu a moderação em nossa região e encoraja extremistas de todos os lados.
Como o presidente Mahmud Abbas tentará usar a Assembleia Geral da ONU, nesta semana, para convencer a comunidade internacional sobre os danos causados por esses acordos entre países árabes e Israel?
Nós apresentaremos nosso caso, reafirmaremo nossa visão de paz e denunciaremos os crimes sistemáticos cometidos pelo poder de ocupação. A Palestina representa um teste fracassado para a comunidade internacional. Ele vai além do que dois países árabes fizeram contra a Palestina. É sobre a comunidade internacional tolerar um regime de apartheid em pleno século 21.