Um requerimento para que o ministro se apresente foi submetido ao Plenário da Câmara pela líder do PSOL, Sâmia Bomfim. Ela quer que o chanceler “preste esclarecimentos, por meio de sessão virtual, sobre aliança com os EUA para iniciativa internacional contra o aborto legal denominada “Declaração de Consenso de Genebra”.
A aliança é dominada pela vontade dos governos em reafirmar a rejeição ao aborto e a defesa da família. Os países, ao assinarem a proposta, enfatizam que “em nenhum caso o aborto deve ser promovido como método de planejamento familiar ” e que “quaisquer medidas ou mudanças relacionadas ao aborto dentro do sistema de saúde só podem ser determinadas em nível nacional ou local de acordo com o processo legislativo nacional”. O documento será adotado no próximo dia 8, depois de meses de uma intensa aproximação do governo brasileiro às alas mais conservadoras da sociedade americana.
Na última quarta-feira, um requerimento foi apresentado pela entidade Conectas Direitos Humanos à Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional e à Comissão de Direitos Humanos do Senado “para que convoquem o Ministro de Estado de Relações Exteriores, Ernesto Araújo, para prestar esclarecimento sobre iniciativa copatrocinada pelo Brasil e Estados Unidos da América”. Procurado, o Itamaraty não se pronunciou até o momento. Em seu discurso na Fundação Getúlio Vargas, há dez dias, o embaixador americano no Brasil, Todd Chapman, fez referência ao projeto.
Segundo ele,”Brasil e Estados Unidos estão conjuntamente patrocinando a Declaração do Consenso de Genebra para assegurar ganhos significativos de saúde para a mulher e defender a família”. O projeto surge depois de uma polêmica em relação ao papel do governo diante do caso de uma garota de dez anos que, depois de abusada sexualmente, teve dificuldades para conseguir realizar um aborto legal.
Projeto internacional Agora, a ofensiva torna-se internacional. O rascunho do texto obtido pela coluna reafirma que “não há direito internacional ao aborto, nem qualquer obrigação internacional por parte dos Estados de financiar ou facilitar o aborto, consistente com o consenso internacional de longa data de que cada nação tem o direito soberano de implementar programas e atividades consistentes com suas leis e políticas”. A esperança é de que a aliança possa a chegar a ter cerca de 30 países.
O foco da ação diplomática se concentra em países como Arábia Saudita, Iemen, Líbia, Iraque e Egito, conhecidos por serem criticados duramente pelo tratamento que conferem às mulheres na sociedade. Países dominados pela ultradireita, como Hungria e Polônia, também negociam sua participação. Na América Latina, apenas o Haiti, Guatemala e o Paraguai aparecem em uma lista de eventuais apoiadores. Diante da revelação, parlamentares entendem que o chanceler brasileiro precisa explicar “esta articulação e o conteúdo da referida declaração, sobretudo à luz da Portaria no 2.282, de 27 de agosto de 2020, editada pelo Ministério da Saúde em flagrante intenção de constranger o acesso ao aborto legal no Brasil.
“Soma-se, a este contexto, a coordenação recentemente revelada entre o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos com a Alliance Defending Freedom (ADF), organização estadunidense extremista e LGBTfóbica, notória opositora do aborto legal nos EUA e no mundo”, diz. A coordenação foi revelada pela coluna, há duas semanas. “Os ataques do governo Bolsonaro ao direito de mulheres e meninas interromperem gestações legalmente e de modo seguro ganham contornos ainda mais perversos considerando que, segundo dados oficiais, em média 4 meninas de até 14 anos são estupradas por hora no país e que, por dia, 6 meninas entre 10 e 14 anos são recebidas no Sistema Único de Saúde para a realização de abortos em razão de estupro”, diz o requerimento. “O caso da menina de 10 anos do Espírito Santo, estuprada por seu tio por 4 anos, revela que muitas vezes este direito ao aborto legal é obstruído. Não à toa, 26 mil meninas nesta faixa etária se tornam mães precocemente por ano no Brasil”, apontou.
“Ressalta-se, ainda, que ao patrocinar estas iniciativas e esforços internacionais contra o aborto legal e os direitos sexuais e reprodutivos de mulheres e meninas, o Itamaraty age em flagrante oposição ao Art. 3o, III, de nossa Constituição Federal, que determina que as relações internacionais de nossa República devem reger-se pelo princípio da prevalência dos direitos humanos”, diz o requerimento. “É urgente, portanto, que a Câmara dos Deputados possa interpelar o Ministro sobre a referida declaração e os esforços da diplomacia brasileira a nível internacional contra o direito à saúde sexual e reprodutiva de mulheres e meninas”, completa Sâmia.