Ao rejeitar o tratamento humanitário previsto pelo pacto, o país poderia abrir espaço para que outros governos que não adotaram – como EUA e Hungria – fizessem o mesmo com brasileiros, explica especialista
Notícias ao Minuto Brasil
A ONU confirmou que recebeu, na terça-feira (8), uma carta da missão brasileira na organização notificando sobre a retirada do Brasil do Pacto Global de Migração, oficializada pelo presidente Jair Bolsonaro no mesmo dia.
A confirmação, enviada por email, não traz informações sobre o teor do documento. Em mensagem anterior, a organização lembrou que o pacto abandonado agora pelo governo Bolsonaro havia sido adotado por 164 países – entre eles, o Brasil – em dezembro, no Marrocos.
A ONU lembra que o pacto não era legalmente vinculante, e que os países que optassem por adotá-lo deveriam implementar as medidas em nível nacional. “O GCM [sigla em inglês] é o resultado de consultas e negociações extensivas (18 meses) entre estados-membros, apoiados por uma ampla gama de parceiros.”
“É sempre lamentável quando um estado-membro se dissocia de um processo multilateral, particularmente de um tão respeitoso a especificidades nacionais”, afirmou uma representante do escritório do porta-voz do Secretariado-Geral da organização.
A saída do Brasil do pacto foi primeiramente sinalizada em dezembro pelo ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, antes de mesmo de o presidente tomar posse. Para ele, o instrumento era “inadequado” para lidar com a questão migratória e os países devem estabelecer suas próprias políticas.
Nesta quarta, Bolsonaro criticou o acordo e afirmou que o país era soberano para decidir se aceitava ou não migrantes. “O Brasil é soberano para decidir se aceita ou não migrantes. Quem porventura vier para cá deverá estar sujeito às nossas leis, regras e costumes, bem como deverá cantar nosso hino e respeitar nossa cultura.
“Não é qualquer um que entra em nossa casa, nem será qualquer um que entrará no Brasil via pacto adotado por terceiros. NÃO AO PACTO MIGRATÓRIO”, escreveu em uma rede social.
Para James Green, professor do departamento de história da universidade Brown, a decisão do presidente reverte 150 anos de política migratória brasileira, além de sinalizar que o país não deseja ser referência internacional em temas como imigração ou aquecimento global.
“Ele tem que considerar a vulnerabilidade dos brasileiros que moram fora. Ele está dizendo que não se importa com os cidadãos que estão fora do país, inclusive pessoas que saíram nos últimos anos pela situação econômica”, afirmou.
Ao rejeitar o tratamento humanitário previsto pelo pacto, prossegue, o país poderia abrir espaço para que outros governos que não adotaram – como EUA e Hungria – fizessem o mesmo com brasileiros.
“Infelizmente, o presidente do Brasil está seguindo o mau exemplo do [presidente americano, Donald] Trump. Ele se identifica com ele, então está fazendo tudo o que ele faz”, diz. “Ele usa a mesma demagogia do Trump. Está copiando os EUA, mas é uma cópia malfeita.”
Green se refere ao fato de Trump ter tornado a questão imigratória uma verdadeira bandeira de seu governo, a ponto de deixar o governo paralisado parcialmente pela recusa em aprovar leis que financiem as agências e departamentos, mas que não incluam dinheiro para o muro que ele quer construir na fronteira com o México. O impasse com democratas entra em seu 20º dia.
Ao falar em cópia malfeita por Bolsonaro, Green faz referência à diferença de poder de barganha entre EUA e Brasil como players globais -o país é apenas a nona maior economia mundial, segundo o FMI (Fundo Monetário Internacional). Os EUA são a primeira.
Outro ponto é que o próprio Trump não anda no auge de sua popularidade nos Estados Unidos. A aprovação do presidente está em 39%, segundo o instituto de pesquisas Gallup.
“É uma política limitada. Bolsonaro está se ligando a uma pessoa que está numa crise política e que pode ser derrotado nas eleições de 2020”, diz. “O que vai acontecer se um democrata assumir a Presidência? Ele pode reverter uma série de coisas que vão contra o Brasil.”
Para Camila Asano, coordenadora de programas da Conectas Direitos Humanos, ao sair do pacto, o governo Bolsonaro adota uma “gramática antiquada e equivocada de considerar o migrante como ameaça à soberania nacional” e esquece que a decisão “tem impacto significativo sobre os brasileiros que atualmente vivem no exterior”. “Hoje temos mais brasileiros vivendo fora do que pessoas de outras nacionalidades aqui no Brasil”, afirma.
Asano afirma que o Brasil está minando sua imagem de referência mundial em política migratória e que a medida contradiz recomendação do Grupo de Lima, do qual o país faz parte. “O governo Bolsonaro vem mandando sinais muito contraditórios a respeito do espaço do multilateralismo em seu governo, ameaçando longa tradição brasileira de ser um ator de destaque na política internacional”, diz.
Procurada para comentar a saída do Brasil do pacto, a OIM (Organização Internacional para as Migrações) não quis se pronunciar. Os EUA foram o único país a não assinar o pacto, em julho de 2018. A Hungria chegou a ratificar, mas deixou o GCM poucos dias depois. Em dezembro, o pacto foi adotado por 164 países.
O acordo traz medidas para proteger os migrantes e integrá-los à sociedade. Também estabelece regras para devolvê-los a seus países de origem e proíbe deportações coletivas e discriminação na análise sobre a permanência ou não do migrante no país.