“As empresas estão sujeitas a imenso escrutínio em países como o meu e precisam ter cadeias de fornecimento sustentáveis. [Por isso,] o governo britânico implementou legislação [para restringir a compra de fornecedores com envolvimento em desmatamento] no ano passado”, diz o diplomata.
Wilson afirma que o Reino Unido apoia fortemente a entrada do Brasil na Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o clube dos países ricos, e diz acreditar que o país tem todas as condições para tal. “Hoje, entre os candidatos, é o que aderiu ao maior número de instrumentos da OCDE”. No entanto, na visão dos membros do órgão, diz o diplomata, que já foi embaixador da Holanda e serviu na missão da ONU em Nova York e na China, a política ambiental e a agenda anti-corrupção são obstáculos.
À Folha o embaixador abordou também o combate à Covid no Reino Unido, que já vacinou 39% de sua população. “Aprendemos no início que é necessário responder rapidamente às pressões sobre o sistema de saúde, tentando aliviar essa pressão de diversas maneiras: isolamento social, lockdowns e vacinas.”
No Relatório Integrado 2021, o governo britânico afirma que está investindo em sua capacidade de compreender a China e seu povo e melhorando sua capacidade “para responder às ameaças sistêmicas que o país representa para nossa segurança, prosperidade e valores”. Em que sentido a China representa uma ameaça? Nós usamos uma linguagem bem cuidadosa no relatório, dizemos encarar a China tanto como uma competidora quanto como uma colaboradora, uma parceira. Em alguns temas devemos cooperar com a China, entre eles economia e comércio, mas também, primordialmente, em clima.
Em relação às mudanças climáticas, a China é parte da solução e vem fazendo coisas notáveis em sua economia. Mas há temas em que a China representa uma ameaça para nossos valores e nossos sistemas. Por exemplo, em Hong Kong, a China mudou recentemente a maneira em que são selecionados os representantes democráticos [reduziu o papel da população na escolha], e meu governo foi claro em dizer que vemos isso como uma violação da declaração conjunta que fizemos [assinada em 1984, determinou os termos de governança de Hong Kong quando o território britânico foi devolvido à China].
Nosso embaixador em Pequim tem sido muito assertivo na defesa da imprensa livre em chinês para os chineses, sem censura. Acreditamos ser possível ter uma relação que nos permita ser transparentes sobre as nossas discordâncias e vigorosos na defesa de nossos valores. Ao mesmo tempo, há espaço para cooperar em questões que precisamos cooperar. Acreditamos que lidar com a China e falar com nossos aliados sobre como lidar com a China é uma parte essencial da política externa ao longo da década.
O Reino Unido proibiu que as operadoras do país comprassem equipamentos da chinesa Huawei para a infraestrutura de 5G no país e exigiu que o equipamento existente seja gradualmente removido. O Brasil deve realizar neste ano o leilão da frequência 5G e, na prática, determinou que as operadoras construíssem uma rede privativa para o governo, sem equipamentos da Huawei. Por que o governo britânico avaliou que era necessário vetar a Huawei? Ao longo do tempo, vamos reduzir a dependência que as operadoras de equipamentos têm da Huawei.
Fizemos isso porque não queremos depender de nenhum fornecedor e queremos cooperar com outros, como alguns de países europeus, como Finlândia e Suécia, e com os EUA, para estabelecer uma cadeia de fornecimento que seja realmente segura. Não se trata apenas de estar preocupado com o caso de alguma empresa ter más intenções. É também para garantir que vamos comprar equipamentos seguros, que não sejam facilmente hackeáveis. Por isso, precisamos investir não apenas no equipamento mais barato, mas também naquele que garante a resiliência de nossas redes a longo prazo. Nossa política não é direcionada a nenhum fornecedor específico. Somos claros de que não queremos estar excessivamente dependentes de nenhum fornecedor.
Os senhores consideram os equipamentos da Huawei seguros? Há equipamento que é mais barato porque é menos seguro, e há equipamento que é mais caro e mais seguro. Acreditamos que faz sentido investir em segurança e que precisamos diversificar fornecedores, porque não é saudável depender demais de um fornecedor para uma coisa tão importante como a rede 5G.
O senhor afirmou que o Reino Unido gostaria de ter uma relação ampla e profunda com o Brasil. Em que sentido? Meu governo quer desenvolver relações estrategicamente significativas com grandes democracias com as quais, de maneira geral, compartilhamos valores. O Brasil entra de forma muito firme nessa categoria. A relação comercial entre os países não é tão grande quanto poderia ser, porque há muitas barreiras comerciais que poderiam ser eliminadas, e há uma série de acordos comerciais que poderíamos fechar se as circunstâncias políticas forem favoráveis.
Há coisas que poderiam ser feitas amanhã e que ajudariam as empresas britânicas a fazerem negócios no Brasil. O exemplo mais óbvio é a bitributação. Não temos um acordo de eliminação de bitributação com o Brasil. É o maior país do mundo com o qual não temos um acordo de bitributação. Se você adotar uma visão estreita, pensará “ora, vamos perder receita tributária se fecharmos um acordo”. Mas se pensar de forma ampla, saberá que haverá expansão do comércio, e a arrecadação de impostos vai subir. Nosso intercâmbio comercial corresponde a 1% do total da corrente de comércio do Brasil, há muito para crescer.
O governo brasileiro tem sido muito claro em sua intenção de abertura econômica. Nos foros multilaterais, por exemplo, nós e o Brasil acreditamos que é preciso reformar a Organização Mundial do Comércio e poderíamos estar atuando nisso de forma mais profunda. O Brasil tem um perfil internacional muito forte e diplomatas muito competentes. Deveríamos cooperar mais em questões multilaterais. Se olharmos para o mundo da perspectiva do Brasil e do Reino Unido, nós estamos em lados opostos do Atlântico, mas, na verdade, temos muito em comum na forma como encaramos oportunidades e ameaças.
Quando o senhor diz cooperação ampla, o senhor vê espaço para trabalhar com governos locais, com governadores no Brasil? Com certeza. Tive conversas muito interessantes em São Paulo e no Rio sobre o que os governos estaduais estão fazendo. Em relação a mudanças climáticas, por exemplo, diferentes estados têm diferentes abordagens. Duas semanas atrás estive em São Paulo e assinei um memorando de entendimento com o governador João Doria sobre clima. O Reino Unido vem se engajando com governos das províncias e de cidades no mundo todo. Eles estão transformando suas economias para torná-las mais “verdes”, sabem que isso é muito rentável. E em estados onde o setor financeiro é grande, como em São Paulo, eles estão vendo grandes mudanças no comportamento dos investidores. Nosso cônsul no Recife está conversando com prefeitos que querem assinar memorandos de entendimento com o Reino Unido para obter expertise para tornar suas economias mais sustentáveis.
O Reino Unido passou por momentos muito difíceis no combate à pandemia de Covid-19, mas, nos últimos tempos, promove uma campanha de vacinação acelerada (39% da população já foi imunizada, diante de 4,6% no Brasil) e vê forte redução no número de infecções. O que foi essencial na resposta do Reino Unido à pandemia? Como todos os países, aprendemos muito nos últimos meses e não acertamos em tudo, então mantemos a humildade. Mas, de fato, o programa de vacinação é uma história de sucesso, e alguns fatores chave que aprendemos foram: começar cedo o programa [o início das negociações com farmacêuticas foi em maio de 2020, garantindo assim uma ampla gama de vacinas], usar parcerias entre setor público e privado para pesquisas e assumir riscos. Apostamos em inúmeras vacinas diferentes, não pusemos todos os nossos ovos em uma cesta. Além disso, no início o governo fez um grande investimento em ciência, na Universidade Oxford em parceria com a AstraZeneca [que também tem parceria com a Fiocruz]. Vamos começar produzindo, mas vamos transferir a tecnologia para que outros possam produzir. É algo extraordinário para uma grande farmacêutica. Eles merecem mais crédito.
Além de vacinas, em termos de medidas de prevenção, o que funciona? Sendo bem franco, se tivéssemos feito o lockdown antes, bem no começo, haveria menos mortes. Aprendemos no início que é necessário responder rapidamente às pressões sobre o sistema de saúde, tentando aliviar essa pressão de diversas maneiras: isolamento social, lockdowns e vacinas. Mas não vamos estar seguros até que o mundo inteiro esteja vacinado, e por isso fizemos um investimento maciço na Covax, o mecanismo multilateral para distribuição de vacinas no mundo. Também nos comprometemos a colocar 80% do nosso estoque de vacinas na Covax quando tivermos vacinado toda a nossa população. E, com a parceria com o Brasil, com a Fiocruz, conseguimos melhorar nosso entendimento sobre o funcionamento da vacina e da doença.
O Reino Unido tem o segundo maior estoque de vacinas no mundo, atrás apenas do Canadá. Enquanto isso, muitos países estão desesperados para comprar vacinas. Os EUA foram procurados para venderem ou doarem parte de suas vacinas a outros países, mas recusaram, dizendo que precisam vacinar os americanos antes. E o Reino Unido? Assim que tivermos vacinado toda a nossa população, vamos liberar 80% do estoque para o Covax. Vamos fazer isso o mais rapidamente possível. Nossa meta é vacinar toda a população alvo até o fim de junho [primeira dose], mas o programa está indo tão rápido que talvez conseguiremos fazer isso antes. Obviamente nossa primeira obrigação é com a nossa população. E não é que estejamos sentados em cima de uma pilha de vacinas sem fazer nada. Nós assinamos contratos com farmacêuticas para fazerem esse fornecimento, mas ainda precisamos receber essas vacinas, e, daí, chegar até o braço das pessoas. No Brasil, vocês têm uma tradição muito forte de vacinar a população, e há uma grande aceitação da vacina, de 85%. No médio prazo, isso vai deixar o Brasil em uma boa posição, porque, na medida em que conseguirem comprar as vacinas, vão vacinar rapidamente.
Em uma entrevista ao jornal Valor Econômico, o senhor enfatizou a importância de o Brasil se adequar às normas ambientais e de combate à corrupção da OCDE, como forma de acelerar a acessão ao órgão. Desde que a entrevista foi publicada, houve dois episódios: o comitê de meio ambiente da OCDE mais uma vez adiou a promoção do Brasil de convidado para participante e foi estabelecido um comitê de monitoração de legislação anticorrupção, porque a entidade vê retrocessos na área no governo atual. Como o senhor encara essas medidas? Quero começar deixando alguns pontos claros: o Reino Unido quer o Brasil na OCDE. Apoiamos a candidatura do país e cooperamos com o governo brasileiro em uma série de aspectos técnicos do processo. Hoje, entre os candidatos à acessão à OCDE, é o país que aderiu ao maior número de instrumentos da OCDE. Agora, ver a política ambiental e o combate à corrupção como obstáculos à entrada do país na OCDE é simplesmente uma descrição de como os membros da OCDE, de forma coletiva, enxergam essas questões. Não é uma visão do governo britânico, é apenas o que está acontecendo na OCDE. O Brasil precisa se engajar nessas questões e resolvê-las, uma a uma.
É normal que o Brasil seja questionado sobre medidas anticorrupção, então o país deve simplesmente resolver os problemas, implementar legislação, regulamentação etc. No meio ambiente, trata-se de uma questão mais ampla. Na OCDE, o Brasil deve simplesmente se engajar nos mecanismos, fazer ajustes, e não se distrair com questões políticas.
O chanceler Ernesto Araújo, o presidente Jair Bolsonaro e o vice-presidente Hamilton Mourão afirmaram repetidamente que existe uma campanha da mídia internacional para desacreditar o Brasil. Eles dizem que a mídia espalha desinformação sobre a política ambiental brasileira, que retrata a situação do desmatamento e dos incêndios de forma distorcida ou exagerada. O senhor acredita que há uma campanha internacional da mídia e uma visão distorcida sobre a política ambiental brasileira? No curto período de tempo que estou aqui —cheguei em janeiro—, já ouvi essa argumentação de membros do governo. E preciso dizer uma coisa: existe uma preocupação genuína no mundo sobre desmatamento. E o Brasil está no topo dessa preocupação porque é dono de 60% da Amazônia, que é território soberano do Brasil. A discussão é sobre como todos nós conseguiremos chegar a um arranjo que proteja a floresta, mas também seja lucrativo para as pessoas que vivem lá.
As pessoas querem entender qual é o plano para reverter a trajetória que desde 2012 vem piorando. Acho que essa é uma pergunta perfeitamente legítima. Quando falo com o governo privadamente, autoridades concordam que é uma questão legítima. Mas se concordam que está piorando, como podemos consertar? O Brasil precisa implementar sistemas que sejam realmente confiáveis para monitorar o desmatamento e tentar reduzir o desmatamento. Isso já foi feito antes de forma bem sucedida, pode ser feito de novo.
Depois, vem a responsabilidade que o resto de nós temos —para que o povo da Amazônia possa se beneficiar, precisamos criar mercados de carbono e mecanismos de financiamento que nos permitam avaliar de forma correta esses recursos. É perfeitamente justo dizer que nós, coletivamente, não conseguimos atribuir valor monetário de forma adequada a esses recursos naturais. Trata-se de um valor imenso e um grande mercado. Se não fizermos isso, pode haver grandes consequências financeiras —e não é o governo britânico que está falando isso, são os consumidores e investidores. Os investidores nunca estiveram tão preocupados com riscos ambientais como estão agora. Se Larry Fink [presidente da administradora de fundos bilionários BlackRock] afirmou estar preocupado com a possibilidade de seus fundos de investimento estarem operando em lugares onde não há garantia de que medidas de proteção ambiental estejam sendo adotadas, é uma sinalização muito importante. E os consumidores estão dizendo: se nós não confiarmos que as cadeias de fornecimento não estão envolvidas com desmatamento, nós simplesmente não vamos comprar seus produtos. As empresas estão sujeitas a imenso escrutínio em países como o meu e precisam ter cadeias de fornecimento sustentáveis.
O governo britânico implementou legislação [para restringir a compra de fornecedores com envolvimento em desmatamento] no ano passado. É justo o governo apontar que o Brasil tem um bom histórico em combustíveis renováveis e agricultura sustentável. Mas eu não estaria fazendo meu trabalho direito se não dissesse que a preocupação global com o ritmo de desmatamento é real.
O senhor disse que há responsabilidade coletiva do mundo para implementar um mercado de carbono eficiente, mas que é responsabilidade do governo brasileiro mostrar que tem um plano para reverter o aumento do desmatamento. O senhor já viu esse plano do governo brasileiro? Sendo franco, temos conversas quase diárias com o governo brasileiro sobre esse tema. Existe a capacidade de desenvolver um plano que seria substantivo e convincente para o mundo. Mas, tenho que dizer, ainda não chegamos lá. A estação de desmatamento vai começar logo e vai ser muito importante mostrar que a trajetória pode ser revertida, da mesma maneira que foi revertida dez anos atrás.
Foi implementada legislação britânica para garantir que produtos venham de cadeia de fornecimento sustentável. Que tipo de consequências essa lei pode trazer para empresas no Brasil que não conseguem provar isso? As empresas de lá vão ter que trocar de fornecedor. As empresas brasileiras estão examinando isso de forma muito cuidadosa, e as que têm grande mercado externo estão desesperadas para garantir que estejam cumprindo essas leis.
Isso depende do setor privado ou do governo também? Bom, se a empresa opera em um ambiente em que o desmatamento está caindo e há um plano claro para reduzir o desmatamento, isso facilita para todas as empresas. Então é responsabilidade do governo e do setor privado.
Raio-x
Peter Wilson, 52 – Embaixador do Reino Unido no Brasil, é formado em história e mestre em administração pública. Foi o representante britânico na Holanda e na ONU, trabalhou na embaixada do país em Pequim e atuou como conselheiro político em Islamabad, no Paquistão. Seu pai foi governador de Hong Kong.