Zura Guchashvili tinha 20 anos e servia em Tbilisi, a capital da república caucasiana que estava sob risco de ocupação naquela que foi a primeira aventura militar da Rússia
Notícias ao Minuto Brasil
Há exatos dez anos, Zura Guchashvili foi acordado por outros soldados na barraca na linha de frente próxima da cidade georgiana de Mtskheta. “Falaram que a guerra tinha acabado. Entendi que nunca mais meu país faria parte do Ocidente”, disse.
Guchashvili tinha 20 anos e servia em Tbilisi, a capital da república caucasiana que estava sob risco de ocupação naquela que foi a primeira aventura militar da Rússia no exterior desde a malfadada invasão do Afeganistão pelos soviéticos, ocorrida em 1979.
O cessar-fogo mediado pela União Europeia, que entrou em vigor após apenas cinco dias de conflito, garantiu a independência da Geórgia, mas a um custo: a manutenção de aproximadamente 20% de seu território nas mãos de separatistas reconhecidos por Moscou.
Morreram cerca de 1.100 pessoas, 400 delas civis, e aproximadamente 200 mil perderam seus lares.
De um ponto de vista maior, geopolítico, a vitória marcou o início da transformação de Vladimir Putin de um líder admirado por ter estabilizado o caos russo dos anos 1990 em uma espécie de vilão de seriado no Ocidente.
Em agosto de 2008, Putin já havia servido oito anos como presidente e ocupava o posto de primeiro-ministro do governo de seu pupilo Dmitri Medvedev, sendo o verdadeiro dono do poder no Kremlin. A partir daquele mês, ele colocou em prática toda a desconfiança com que via os movimentos dos Estados Unidos e da Europa.
Desde o fim da Guerra Fria, a aliança militar criada para conter a União Soviética, a Otan, se expandira ao leste, absorvendo 11 países que foram comunistas (inclusive os Estados Bálticos, parte do império de Moscou).
Já em 2006, o chanceler Serguei Lavrov, que está no cargo até hoje, disse em uma entrevista à Folha de S. Paulo que isso era inaceitável. O assédio da Otan à Geórgia, que fica no flanco sul russo, consistia em uma ameaça à paz -embora ninguém diria que, dois anos depois, Putin iria às vias de fato.
Se a briga era com o Ocidente, o Kremlin tinha na pequena Geórgia um adversário por procuração ideal. Em 2004, a primeira das chamadas “revoluções coloridas” havia derrubado o governo pró-Moscou de Eduard Shevardnaze, e seu líder, o impetuoso Mikheil Saakashvili, foi eleito presidente.
Ocidentalizado, ele declarou a incorporação de duas áreas autônomas pró-Rússia, a Ossétia do Sul e a Abkházia, uma prioridade nacional. Começou a namorar a Otan.
Estreitou tanto os laços com os EUA que uma avenida em Tbilisi foi renomeada George W. Bush. Só que em várias cidades do país há a rua Stálin, um lembrete dos laços da terra natal do ditador soviético com o poder em Moscou.
Em 2008, a Rússia estabeleceu relações formais com as duas regiões separatistas, integradas economicamente ao país apesar de serem consideradas pela ONU como parte da Geórgia. Em consequência, aumentaram as escaramuças.
Em 7 de agosto de 2008, Guchashvili saiu de seu quartel perto da capital e foi enviado para a linha de frente. “Eles nos atacaram primeiro”, disse, em uma conversa mediada por uma amiga tradutora. Moscou conta outra história: Saakashvili foi o agressor.
Se foram provocadas ou não, há debate, mas de fato as operações pesadas começaram do lado de Tbilisi, com a invasão da Ossétia do Sul.
O que talvez não tenha sido previsto por Saakashvili foi a reação russa. No dia seguinte, ataques aéreos começaram e 70 mil homens mobilizados para um exercício militar no norte do Cáucaso entraram em ação com outros 9.000 soldados separatistas.
Navios russos no mar Negro foram acionados e, ao fim do conflito, soldados de Moscou já ocupavam território georgiano fora das duas áreas separatistas. Os cerca de 25 mil homens de Saakashvili estavam perdidos.
Não foi um passeio completo, contudo. Sistemas antiaéreos georgianos abateram, segundo o especialista militar russo Ruslan Pukhov, sete aviões de Moscou. “Foi uma derrubada a cada 17 missões, a pior média desde os primeiros estágios da invasão alemã da União Soviética, em 1941.”
O resultado disso foi uma ampla renovação das Forças Armadas russas, completada em 2012 e com grande foco na Aeronáutica e na defesa aérea. O aumento do gasto militar foi amparado pela então alta nos preços do petróleo, motor da exportação russa.
Ao mesmo tempo, o Ocidente seguia engajado na custosa “guerra ao terror” e sofrendo os efeitos da crise de 2008.
“A guerra de 2008 demonstrou que a Rússia recuperou seu status de potência mundial e forçou o Ocidente a tratá-la assim. A contínua hostilidade, os conflitos e a escalada militar inspiradas por ela são testamento da eficácia do golpe”, escreveu o analista Eugene Chauchovski, da consultoria Stratfor.
Com efeito, em 2014 Putin voltou a pegar em armas para defender seus interesses, intervindo na crise ucraniana.
Como na Geórgia, o governo local pró-Moscou caiu em um golpe inspirado pelo Ocidente. Sem pestanejar e usando recursos testados em 2009, como ciberataques e uso de tropas irregulares, a Rússia promoveu a reintegração da Crimeia e fomentou separatistas no leste do vizinho.
Foi além, intervindo militarmente na guerra civil síria e salvando o ditador local, Bashar al-Assad, em 2015.
A secretária de Estado americana durante a guerra, Condoleeza Rice, escreveu nesta semana um artigo para o jornal The Washington Post defendendo que os EUA ao fim evitaram a total anexação da Geórgia. “É uma história triste, e Putin talvez tenha aprendido lições erradas dela.”
Talvez. Mas, como previu o hoje operador de turismo Guchashvili, a Geórgia não integrou o arcabouço institucional ocidental. Tropas russas deixaram o país, mas estão baseadas nas áreas autônomas. Saakashvili, após o mandato, caiu em desgraça e tentou carreira como político na Ucrânia –que deu errado, deixando-o um apátrida.
Já a Rússia experimenta desde então sanções econômicas e enfrentou dois anos de recessão, até 2016, devido à queda no preço do petróleo. Mas sobreviveu para ver uma nova alta na cotação, Putin com mandato até 2024 e o padrão Geórgia vingado: a aproximação da Ucrânia com a Otan foi congelada.