Narendra Modi, premier da Índia, presta homenagem aos soldados que perderam suas vidas em conflito com a China Foto: HANDOUT / AFP/17-06-2020
Maria Abi-Habib, de New York Times
WASHINGTON — Durante anos, os Estados Unidos e seus aliados tentaram convencer a Índia a se tornar um parceiro militar e econômico mais próximo ao enfrentar as ambições da China, pintando o cenário como uma chance para a maior democracia contrabalançar a maior autocracia do mundo. Nesta semana, a ideia de um confronto do tipo se tornou mais real quando soldados indianos e chineses enfrentaram a maior violência na fronteira entre os dois países em 45 anos, deixando 20 soldados indianos mortos e causando um número desconhecido de vítimas chinesas.
O primeiro-ministro Narendra Modi se reivindica capaz de desempenhar um papel mais robusto para a Índia na região e no mundo. Mas analistas dizem que as novas tensões com a China serão o teste mais severo até agora para saber se a Índia está preparada — ou realmente disposta — a aumentar seu poder.
Com a China enfrentando um novo escrutínio e críticas sobre a pandemia do coronavírus, autoridades indianas pareciam encorajadas a ocupar esse espaço, adotando medidas que fizeram os diplomatas ocidentais sentirem que seu objetivo de uma Índia mais próxima do Ocidente estava começando a ser realizado. E alguns acreditam que o atrito com Pequim empurrará Nova Délhi ainda mais nessa direção.
Neste mês, a Índia assinou um acordo de defesa com a Austrália que permite que as duas nações usem as bases militares uma da outra. E espera-se que o país convide a Austrália a participar de exercícios navais que já realiza com o Japão e os Estados Unidos, para fortalecer os esforços do chamado Diálogo Quadrilateral de Segurança (Quad) — formado por Austrália, Japão, Estados Unidos e Índia —, com o objetivo de combater a projeção marítima da China na região.
A campanha da Índia por um perfil mais alto nas organizações multilaterais também ganhou novo peso. Na quarta-feira, o país foi eleito sem oposição a um assento não permanente no Conselho de Segurança da ONU. E em maio, conquistou a presidência do conselho executivo da Organização Mundial da Saúde, onde apoiou prontamente pedidos para investigar as origens do coronavírus — uma investigação que a China lutou para vetar.
Mas a Índia ainda está bem atrás da China quando se trata de poder militar e econômico. Isso pode fazer com que os líderes indianos desistam da perspectiva de uma escalada armada em sua disputada fronteira no Himalaia, onde eclodiram os sangrentos confrontos desta semana.
Generais chineses e indianos continuam a se encontrar ao longo da fronteira para discutir os esforços de redução da escalada de violência. E autoridades indianas reconheceram na sexta-feira que, na noite anterior, a China libertou 10 soldados indianos apreendidos durante o conflito. (Pouco depois, o porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da China disse que não sabia de prisioneiros, mas não negou explicitamente o anúncio da Índia).
Nova chance com a pandemia – Mas imagens de satélite indicam que os dois lados ainda estão enviando reforços. Na sexta-feira, Modi marcou uma reunião a portas fechadas com os principais líderes da oposição para discutir qual será o próximo passo. Ao fim do encontro, pareceu recuar, ao afirmar que não houve penetração chinesa em território reivindicado pela Índia.
Embora as Forças Armadas da Índia sejam uma das maiores do mundo, não conseguiram se modernizar e permanecer competitivas. Este ano, o país anunciou um orçamento militar de quase US$ 74 bilhões, em comparação com os US$ 178 bilhões da China. No caso da Índia, boa parte desses gastos vai para o pagamento de aposentadorias.
Economicamente, a Índia parece mais disposta a usar seu vasto mercado como uma alavanca para pressionar a China. Em abril, aprovou uma legislação que exige aprovação do governo para investimentos de entidades chinesas, um revés para Pequim, já que suas empresas buscam crescimento no exterior. Na última segunda-feira, a agência Reuters divulgou que o governo planejava aumentar as tarifas sobre produtos chineses.
Diplomatas esperam também que a Índia impeça a gigante chinesa de telecomunicações Huawei de entrar no seu mercado para construir uma rede sem fio 5G. Os Estados Unidos acusam a Huawei de ajudar o governo chinês em ciberespionagem e instou seus aliados a bloquearem o acesso da empresa ao mercado 5G.
Embora o poder de compra potencial da Índia seja uma maneira de dar uma rasteira na China, ele não está nem perto da capacidade de gastar e emprestar que Pequim usou para aumentar sua influência global. Ainda assim, autoridades indianas adotaram a ideia de ser um contrapeso democrático para a China, e o coronavírus ofereceu uma chance de forçar essa narrativa.
Figuras políticas indianas entraram na ofensiva após o início da pandemia, criticando o sistema autoritário da China e sua falta de transparência à medida que o coronavírus se espalhava para além da cidade de Wuhan, onde se acredita que ele tenha começado.
Vijay Gokhale, que recentemente se aposentou como secretário de Relações Exteriores da Índia e ainda é próximo ao governo, escreveu um longo artigo de opinião este mês, criticando a forma como a China lidou com a pandemia. “As deficiências do regime”, escreveu, “estimularão ainda mais o debate sobre a superioridade do modelo chinês como alternativa à democracia. Isso formará a base ideológica para o nascimento de uma nova guerra fria?”
Influência com vizinhos em xeque – A pandemia também deu a Modi a chance de explorar a gigantesca indústria farmacêutica de seu país para fortalecer os laços diplomáticos. Diplomatas que vivem na Índia dizem que, nos primeiros dias da crise, ele e seu ministro das Relações Exteriores estavam “constantemente ao telefone” para oferecer aos países ajuda com medicamentos.
Um diplomata ocidental acredita que a crise do coronavírus deixou a Índia mais ansiosa para construir relacionamentos mais fortes para ajudá-la a lidar com a China, e que a diplomacia com a Índia estava sendo conduzida mais suavemente do que nunca.
— Todo mundo está mais disposto, em particular, a falar sobre o que fazer com a China no mundo pós-Covid — disse o diplomata, sob condição de anonimato. — As maneiras pelas quais a China influenciou essa ordem mundial podem agora ser discutidas com mais facilidade, pois todos tentamos descobrir qual é a nova ordem mundial. A Índia representa um caminho e a China representa outro.
A pressão da China na fronteira não é uma demonstração isolada de força. Desde o início da pandemia, o país afundou um barco vietnamita, atrapalhou operações de plataformas de petróleo da Malásia e reforçou seu controle sobre Hong Kong na esperança de acabar com o movimento pró-democracia local.
E a Índia tem várias razões para se sentir particularmente cercada pela China. Na última década, a China cortejou fortemente seus vizinhos, minando a influência de Nova Délhi. Enquanto as tropas indianas e chinesas se chocavam no Himalaia, o governo do Nepal reivindicou uma faixa de território em sua fronteira que a Índia considera ser sua. O ministro da Defesa da Índia sugeriu recentemente que as ações do Nepal foram tomadas a pedido da China.
No Paquistão, o arquirrival da Índia, a China está construindo grandes projetos de infraestrutura, alguns em território que o governo indiano contesta. Com os projetos construídos, a China está tornando mais difícil para a Índia manter suas reivindicações territoriais.
Alguns veem as ações da China na fronteira como um esforço calculado para manter as aspirações da Índia sob controle.
— A China não quer particularmente que a Índia tenha sucesso — disse Tanvi Madan, diretor do Projeto Índia da Brookings Institution. — Uma Índia mais fraca terá menos peso estratégico em sua própria vizinhança, permitindo que a China intervenha mais; e se envolverá menos em lugares como a África Oriental ou em instituições regionais, apresentando um baixo desafio para a China.