Eliane Oliveira
BRASÍLIA — O embaixador da Rússia, Alexey Labetskiy, assumiu a chefia do posto em Brasília há cerca de dois meses, em meio ao impasse em torno da liberação da vacina Sputnik V no Brasil. O uso do imunizante no país foi proibido pela Anvisa, sob protesto de governadores e congressistas, e só será liberado após o fornecimento de informações e documentos exigidos pelo órgão.
Em entrevista ao GLOBO, Labetskiy afirma que o governo russo respeita a legislação brasileira e está aberto a trabalhar em conjunto com o Brasil e outros países para desenvolver vacinas e medicamentos para combater a Covid-19. Ele ainda afirma que, se for preciso, servirá “de cobaia” e tomará a Sputnik de novo, para provar que o imunizante é eficaz na prevenção da doença. Ele e sua família foram vacinados no início deste ano, antes de virem para o Brasil. Leia abaixo trechos da entrevista.
A vacina Sputnik V é um tema prioritário na agenda bilateral e chegou a ser discutida em uma conversa telefônica entre os presidentes Jair Bolsonaro e Vladimir Putin no mês passado. O senhor tem falado com autoridades brasileiras sobre o assunto?
A Sputnik está na agenda e já falei com várias personalidades brasileiras sobre isso: com o presidente da República, com o ministro da Saúde e com o senhor Barra Torres, da Anvisa. Partimos do princípio que o combate à pandemia é um desafio global e o combate também deve ser global. Devemos unir os esforços de todos os países para vencer esse desastre epidemiológico que caiu sobre a Humanidade. Estamos abertos a trabalhar com todos. Não podemos vencer a pandemia num único país nem em uma única região.
Trabalhamos com os estados, com o setor privado e com a União Química, que assinou um contrato com o Fundo de Investimento Direto da Rússia, que é a única instância no meu país que tem o direito e a possibilidade de negociar e fornecer a vacina Sputnik fora das fronteiras da Rússia. E a União Química possui todos os direitos de uso e produção de IFA [Ingrediente Farmacêutico Ativo, insumo para a produção de vacina].
Fala-se muito sobre se a vacina Sputnik é efetiva ou não. O senhor já se vacinou?
Eu e minha família nos vacinamos em Moscou, em janeiro e fevereiro. Se há dúvidas, posso servir de cobaia. Se precisar, me vacino de novo, porque a vacina é efetiva, protege e é importante para parar a pandemia.
Qual a sua expectativa em relação ao uso da Sputnik no Brasil?
As partes interessadas brasileiras continuam trabalhando com a Anvisa, fornecendo os documentos necessários para o registro da vacina para uso emergencial. Devemos respeitar a ordem interna brasileira quanto à liberação de utilização de medicamentos e vacinas. Estamos trabalhando e, apesar de todas as dificuldades que existem, estamos abertos, caso seja do interesse dos parceiros brasileiros. Hoje, a vacina está permitida em mais de 60 países, incluindo Argentina, México, Venezuela e outros países da América Latina, além de Índia, Hungria e Eslováquia. A Índia, que é um dos maiores produtores de IFA de vacinas do mundo, autorizou a utilização da Sputnik, as primeiras doses já foram concedidas e eles já começaram a vacinar a sua população. Queremos trabalhar com todos os países, inclusive o Brasil, não só em vacinas, mas em estudos científicos para a produção de medicamentos para o tratamento da doença.
Digamos que, hoje, a Anvisa dê o sinal verde para a Sputnik. Quantas doses seriam fornecidas em um primeiro momento?
Não posso dizer quanto com exatidão, porque isso depende de negociações entre as partes interessadas brasileiras, entre elas a União Química, os estados e outras entidades governamentais e não governamentais que estão interessadas em receber. Ouvi dizer que seriam 30 milhões de doses, com base em conversas entre os estados nordestinos e o Fundo de Investimento russo.
A Rússia apoia a proposta que está na Organização Mundial do Comércio (OMC) sobre a suspensão de patentes para vacinas contra a Covid-19?
Estamos abertos à negociação para passarmos nossas tecnologias aos parceiros estrangeiros, assim como aconteceu com a União Química. A tecnologia do Gamaleya (laboratório biológico russo) foi entregue à União Química sem royalties, sem nada, o que significa que nós abrimos a patente.
Recentemente, o presidente Putin deu indulto ao motorista Robson Oliveira, preso na Rússia desde março de 2019, por ter entrado com medicamentos proibidos no país. Houve uma negociação entre os governos dos dois países?
Não houve uma negociação. O cidadão brasileiro Robson tentou entrar no território da Federação Russa com algumas substâncias consideradas como narcóticos e que têm o seu uso proibido. Ele foi detido e o processo foi difícil, por várias razões. Entre os argumentos da parte brasileira, um deles é que o medicamento que ele tentou levar para o Rússia não é considerado narcótico no Brasil. Não podemos negar o fato de que ele não observou as leis russas, por isso houve o processo. O Robson e seus advogados apresentaram um pedido de indulto, que foi apoiado pelos órgãos prisionais por onde ele passou e o presidente concedeu. Não foi uma negociação, e sim um processo legal. Não houve interferência política.
A defesa do Robson provou que ele não sabia de nada. Ele apenas levou uma encomenda para outra pessoa. Na primeira etapa do processo isso não foi provado, porque o Robson foi contratado por um jogador de futebol, também brasileiro, que o deixou lá [Robson levou os medicamentos para o sogro do jogador Fernando].
Os Estados Unidos querem que o Brasil exclua a chinesa Huawei da lista de fornecedores de equipamentos para a tecnologia 5G. O que pensa a Rússia sobre isso?
Para nós, é bem claro que hoje estamos vivendo num mundo em transformação. Quando eu falo em transformação, falo sobre um mundo multipolar nas relações internacionais, políticas e econômicas, ligadas aos investimentos e às tecnologias. E há várias tentativas de fazer voltar a situação para a unipolaridade, que foi característica de todas as relações globais há cinco ou dez anos. A tentativa de utilizar a pressão política para dominar e controlar o mercado está visível, e essa pressão política, de vez em quando, não corresponde às atividades de concorrência global e leal. Vimos isso na tentativa [dos EUA] de punir a Huawei, de impedir o projeto de gasoduto Nord Stream 2 para vender o gás russo à Europa Ocidental. Por isso, estamos abertos a cooperar com todos, negando a política das sanções, as políticas ilegais, a política de interferência nos assuntos internos e as tentativas de manchar a reputação dos agentes econômicos.
Um dos argumentos usados por Washington é que o governo pode ser alvo de espionagem pelo Partido Comunista Chinês. Isso me parece 100% falso. Eu gostaria de salientar que o mundo ocidental se esqueceu da história de Edward Snowden [que trouxe à tona o escândalo de espionagem da CIA] e todas as revelações que foram feitas por este senhor há alguns anos.
O noticiário internacional tem mostrado, nos últimos meses, a trajetória do opositor ao governo russo, Alexei Navalny, que, após receber tratamento na Alemanha, com suspeita de envenenamento, voltou à Rússia e hoje está preso. O que o senhor teria a dizer sobre isso?
O Navalny cria a sua identidade política se baseando, em primeiro lugar, na ajuda externa. Ele não tem muito respaldo na Rússia por uma razão muito simples – e eu já disse isso várias vezes aos meus parceiros brasileiros: ele é um destruidor, e não um criador. E o país necessita agora, nas atuais condições, de criadores. A história do nosso país mostra que tivemos várias revoluções, várias guerras. A destruição leva à destruição, à tragédia. E chegou o período de apreciar os resultados e fazer transformações em função das necessidades da nossa gente, do nosso povo, das nossas famílias, dos nossos filhos e netos.
Navalny foi envenenado pelo governo russo?
Eu não estou convencido que ele foi envenenado.
A Rússia apoia a candidatura do Brasil a uma vaga permanente do Conselho de Segurança da ONU?
Partimos do princípio que, caso seja alcançada a compreensão global de alargamento do Conselho de Segurança, o Brasil é um candidato válido e sólido para ocupar um lugar permanente. E mais: sabemos que o Brasil apresentou a sua candidatura para uma vaga rotativa para os anos de 2022 a 2024 e esperamos que seja possível trabalharmos juntos ainda nesse período.
Ao contrário dos EUA, do Brasil e outros países, a Rússia nunca reconheceu Juan Guaidó, líder da oposição ao governo de Nicolás Maduro, como presidente interino da Venezuela. Agora, Guaidó e Maduro admitem uma solução negociada. Qual a sua opinião sobre isso?
Nosso princípio básico é que o próprio povo venezuelano deve resolver os seus problemas internos, sem a ingerência externa nesses assuntos. O povo venezuelano é capaz de fazer isso.
Sobre as relações com o Brasil, há espaço para comércio e investimentos?
Nossos países têm muito espaço para alargar a cooperação bilateral no domínio econômico e no domínio de investimentos. Há vinte anos, a Rússia foi mero importador de produtos alimentícios e agora nós somos quase o primeiro país exportador de trigo. Conseguimos desenvolver a indústria agropecuária e estamos quase autossuficientes na produção da carne de aves e carne suína. Mas isso não significa que o nosso mercado está fechado. Não. Os produtores brasileiros devem se concentrar na qualidade, na especificação dos produtos necessários para o mercado interno russo, na expansão do fornecimento dos produtos da agroindústria agregados à agroindústria tropical e no fornecimento das tecnologias. De outro lado, é bem visível que a agropecuária brasileira é moderna, bem desenvolvida e se enquadra nos padrões mais altos existentes. Além disso, a indústria farmacêutica brasileira é forte e estamos interessados em trocar experiências e ver os investidores brasileiros também no mercado russo. Há ainda os setores energético e de infraestrutura.
Como o senhor vê a atuação do Brics (grupo formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul)?
O Brics é muito importante e, graças ao esforço dos cinco membros, ele tomou um formato viável e importante na área de governança global. O Brics é o trabalho de cinco países que conseguiram, no mundo atual, criar e defender a sua própria identidade. Cada país realiza uma política própria, soberana, sem ingerência e observando o Direito Internacional.