A junta militar no poder em Myanmar disse hoje que quer “acabar com a anarquia no país”, numa conferência de imprensa onde apresentou um vídeo de um político a afirmar ter subornado a líder deposta, Aung San Suu Kyi.
Mostrando-se indiferente às sanções aprovadas na segunda-feira pela União Europeia e pelos Estados Unidos, o porta-voz do regime, Zaw Min Tun, garantiu sentir-se “triste” porque “os terroristas e as pessoas violentas que morreram” são “seus concidadãos”.
Mas “é preciso reprimir a anarquia. Que países do mundo aceitam a anarquia?”, acrescentou, especificando que o acesso à internet permanecerá restrito “por um certo período”. A junta militar apresentou um vídeo com “a confissão” de um político, o ex-chefe da região de Rangum, Phyo Min Thein, afirmando ter entregado grandes quantias de dinheiro e vários quilos de ouro a Suu Kyi, detida desde o golpe de Estado de 1 de fevereiro.
Estas são as mesmas acusações que a junta militar tornou públicas há duas semanas, estimando que o alegado suborno ascendia a 600 mil dólares (cerca de 505 mil euros) e 11 quilos de ouro. “Dei-lhe [o dinheiro] com as minhas próprias mãos e disse-lhe para o usar para as suas necessidades pessoais e [que pretendia] apoio ao meu trabalho e funções na região de Rangum”, diz Phyo Min Thein no vídeo, que também cita o partido e uma fundação de Suu Kyi como possíveis destinos dos subornos.
Muitos internautas descreveram o vídeo como uma fraude, apontando que o político não move os lábios e que a voz que se ouve não é sua. “Vi este interessante vídeo editado até ao final, mas não vi nem um piscar do nosso chefe de Rangum”, comentou a cibernauta Yenaing, no Twitter.
Desde a sua detenção, Suu Kyi, mantida incomunicável, foi acusada de vários crimes, incluindo a importação ilegal de ‘walkie-talkies’, violação das regras relativas à covid-19, de pôr em perigo a segurança do país e de aceitar subornos.
A polícia leal à junta militar tem reprimido com violência e tiros com balas reais os manifestantes que protestam diariamente contra o golpe de Estado, além de terem bloqueado o sinal de internet móvel e fecharam vários órgãos de comunicação social, detendo e perseguindo jornalistas que noticiavam os protestos.
Pelo menos 261 pessoas morreram na repressão de manifestantes e ativistas contra o golpe e pelo menos 2.300 pessoas, incluindo políticos, estudantes e monges, foram detidas, de acordo com dados da Associação para Assistência a Presos Políticos (AAPP) de Myanmar (antiga Birmânia).
Indiferente à condenação unânime da comunidade internacional da violência e dos presos políticos, a junta militar liderada por Min Aung Hlaing continua a sua repressão no país, onde governou com mão de ferro entre 1962 e 2011. A própria Suu Kyi, que venceu o Prémio Nobel da Paz em 1991, passou um total de 15 anos em várias prisões domiciliares.
Os militares justificam o golpe com uma alegada fraude eleitoral nas eleições de novembro passado, nas quais o partido de Suu Kyi ganhou por larga margem, considerada legítimas por observadores internacionais. Apesar das mortes, detenções e repressões violentas – que um observador da ONU considerou poderem constituir “crimes contra a humanidade” – a mobilização não enfraqueceu.
Em Rangum, capital económica de Myanmar, parcialmente sujeita a lei marcial, a população voltou a manifestar-se hoje de madrugada para tentar impedir a resposta das forças de segurança. Médicos, ferroviários, professores, além de muitos funcionários públicos e do setor privado continuam em greve, paralisando setores inteiros da frágil economia.
Na conferência de imprensa hoje realizada, a junta não mencionou as novas sanções impostas por Bruxelas e por Washington. A União Europeia congelou os bens e proibiu a viagem de 11 funcionários, incluindo o chefe da junta, general Min Aung Hlaing. Essas são as primeiras medidas coercitivas decididas pela UE desde 1 de fevereiro. Vários militares já tinham sido sancionados nos últimos anos pelas perseguições contra a minoria muçulmana rohingya.
Os Estados Unidos, por sua vez, alargaram a sua lista de oficiais de alto escalão sujeitos a sanções, incluindo duas divisões do exército acusadas de ter participado “no assassinato de manifestantes”. O golpe militar, no dia 01 de fevereiro, atingiu a frágil democracia de Myanmar depois da vitória do partido de Aung Sang Suu Kyi nas eleições de novembro de 2020.