Rodrigo Craveriro
Em um dos maiores julgamentos coletivos da história, a Turquia sentenciou à prisão perpétua 337 pessoas, acusadas de conspirar para depor o presidente Recep Tayyip Erdogan, na noite de 15 de julho de 2016. Ao todo, 475 turcos foram levados ao banco dos réus, dos quais 365 são mantidos sob custódia do Estado. Das 337 sentenças perpétuas anunciadas pelo juízes, 291 são agravadas, o que significa que não existe possibilidade de liberdade condicional. Um resumo do veredicto, ao qual a agência de notícias France-Presse (AFP) teve acesso, indica que os réus, incluindo oficiais da Força Áerea turca, foram declarados culpados de “tentativa de derrubar a ordem constitucional, tentativa de assassinato do presidente e homicídios voluntários”
Segundo a AFP, entre os militares condenados, estão pilotos que usaram caças F-16 para bombardear a capital, Ancara, incluindo a sede do Parlamento e as imediações do palácio presidencial, e oficiais que comandaram um levante na base de Akinci — incluindo brigadeiros-generais, coronéis e tenentes-coronéis. Os ataques aéreos custaram a vida de 68 pessoas e deixaram mais de 200 feridos. Erdogan viajava, de férias, em um resort no sul da Turquia. Dos 475 julgados ontem, 60 receberam penas mais leves e somente 75 foram absolvidos. “Justiça foi feita. O Estado não deixou o sangue dos mártires e dos feridos em vão”, afirmou Ufuk Yegin, presidente de uma associação de parentes das vítimas. “Acreditamos que as sentenças foram decididas de acordo com as leis existentes”, completou.
O desfecho de um julgamento que se arrastou por três anos ocorreu em uma enorme sala de audiências montada dentro complexo penitenciário de Sincan, na província de Ancara. Tropas de choque guardavam o prédio, enquanto familiares de réus e de vítimas da tentativa de golpe faziam fila para acompanhar a decisão da Corte. As autoridades concluíram que os conspiradores agiram sob ordens da FETO, organização liderada pelo clérigo islâmico Fethullah Gülen, exilado nos Estados Unidos. Existe a suspeita de que os chamados gulenistas infiltraram-se em instituições públicas, na Justiça, nas Forças Armadas e na mídia. Logo depois da tentativa de golpe, o governo de Erdogan começou um processo de expurgo. Em 1.596 dias, desde uma das noites mais tensas da Turquia, 4.500 pessoas foram condenadas à prisão, incluindo 3 mil que, provavelmente, passarão o resto da vida atrás das grades.
Em entrevista ao Correio, Murat Yavuz Ates — embaixador da Turquia no Brasil — explicou que o país é um dos membros fundadores do Conselho Europeu e calcado pela democracia, no “Estado de direito” e na proteção dos direitos humanos. “Também somos parte do mais alto nível de obrigações internacionais a este respeito. Na Turquia, qualquer pessoa pode interpor recurso de decisão judicial”, afirmou.
De acordo com o diplomata, a “tentativa de golpe terrorista”, realizada pela FETO, “não alvejou uma pessoa, mas um governo legítimo democraticamente eleito e uma ordem constitucional”. Ates lembra que a conspiração violou direitos fundamentais e liberdades dos cidadãos turcos. “Na Turquia, as decisões judiciais são tomadas por tribunais independentes no âmbito da Constituição e da legislação nacional relevante e em conformidade com o direito internacional.”
Aaron Stein, diretor do Instituto de Pesquisa sobre Política Externa, think tank baseado na Filadélfia (Pensilvânia), disse à reportagem que, sob o ponto de vista da Turquia, os autores do golpe fracassado de 2016 cometeram traição. “Nos tempos antigos, eles teriam sido executados. Então, o excesso de sentenças de prisão perpétua é simplesmente um reflexo de quão gave foi o crime cometido”, observou. “As autoridades selecionaram os militares da Força Aérea turca e colocaram homens leais ao governo no comando. Eu diria que estão fazendo o possível para garantir que outra tentativa de golpe aconteça.”
Histórico
O complô de 15 de julho de 2016 impôs um trauma a uma nação com histórico de golpes. O primeiro deles ocorreu em 27 de maio de 1960, sob a coordenação do coronel Alparsian Tukes. O então presidente, Celal Bayar, e o primeiro-ministro, Andan Menderes, foram condenados por traição. Onze anos depois, os militares realizaram uma intervenção, por meio de memorando, contra o premiê Suleyman Demirel. Em 12 de setembro de 1980, o país enfrentou um terceiro golpe militar, depois de choques entre grupos de esquerda e de direita. Em 1997, depois da eleição do partido do Bem-Estar Islamita, os militares emitiram uma série de “recomendações”, incluindo um programa educacional compulsório de oito anos de duração, com a intenção de evitar o recrutamento de crianças em escolas religiosas; e a proibição do véu islâmico em universidades. O então primeiro-ministro, Necmettin Erbakan, viu-se forçado a renunciar.
» Depoimento
“Os membros da FETO — organização pertencente ao clérigo Fethullah Gülen — tentaram um golpe em 15 de julho de 2016. Eles não se intimidaram em usar força militar letal contra civis inocentes, matando 251 pessoas e ferindo milhares. Também bombardearam a Grande Assmbleia Nacional, enquanto os parlamentares estavam em sessão. Centenas de civis que protestavam contra a tentativa de golpe foram mortos a tiros pelos conspiradores, em Ancara e em Istambul. As pessoas envolvidas não apenas tentaram atacar a democracia na Turquia. De forme cruel e consciente, mataram centenas e feriram milhares de inocentes. Acredito que em qualquer país tais crimes seriam punidos com as sentenças mais severas.” Murat Yavuz Ates, embaixador da Turquia no Brasil.
Golpe de Estado sangrento falido
Na noite de 15 de julho de 2016, uma parte do Exército turco se revolta e apreende aviões de combate e helicópteros. O pânico se instaura nas ruas de Ancara e de Istambul. Com o auxílio de tanques de guerra, os conspiradores do golpe atacam o Parlamento e o palácio presidencial. O presidente Recep Tayyip Erdogan, de férias, exorta os turcos a saírem às ruas para resistir a esta “tentativa de golpe de Estado”.
O suposto conspirador
Erdogan denuncia uma “traição” dos soldados golpistas e os vincula ao pregador Fethullah Gülen, que mora nos Estados Unidos há duas décadas. Outrora aliado e agora seu pior inimigo, Gülen desmente a acusação.
Balanço de vítimas
A tentativa de golpe deixa oficialmente 251 mortos, sem contar os golpistas, e mais de 2 mil feridos.
Expurgos
Em 16 e 17 de julho, centenas de generais, juízes e promotores são presos por suposto apoio ao levante. Os expurgos estendem-se, então, à polícia, aos professores e à imprensa. Em 20 de julho, Erdogan declara estado de emergência. Os expurgos começam com os supostos apoiadores de Fethullah Gülen. Depois, afetam o movimento pró-curdo, a imprensa crítica e organizações civis. Desde então, dezenas de milhares de pessoas foram presas e mais de 140 mil, demitidas ou suspensas de suas funções.
Consolidação de Erdogan
Em 24 de junho de 2018, Erdogan ganha confortavelmente a eleição presidencial no primeiro turno. As eleições marcam a passagem de um sistema parlamentar para um regime presidencial, onde o chefe de Estado concentra o Poder Executivo, após uma revisão constitucional ocorrida em 2017.
Revés eleitoral
Em 31 de março de 2019, o Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP, islamo-conservador) lidera as eleições municipais a nível nacional, mas perde em Ancara e em Istambul. Em Istambul, as eleições são anuladas após apelações do AKP, que alega “irregularidades massivas”. A oposição denuncia um “golpe contra as urnas”. Em 23 de junho, o opositor Ekrem Imamoglu vence novamente em Istambul, naquele que foi o pior revés eleitoral para Erdogan desde que seu partido chegou ao poder em 2002.
Leis controversas
Em junho de 2020, o Parlamento adota um polêmico projeto de lei que fortalece consideravelmente os poderes dos “vigilantes de bairro”. A oposição acusa o presidente de querer criar uma “milícia”. Um mês depois, ele aprova um projeto de lei que reforma a estrutura da ordem dos advogados. A categoria acusa uma manobra para reduzir sua independência.
De basílica a mesquita
Em 10 de julho, Erdogan, buscando consolidar seu eleitorado conservador, anuncia a transformação da antiga catedral Hagia Sophia em uma mesquita, depois que um tribunal revogou o status de museu desse importante ponto turístico de Istambul. Duas semanas depois, vários milhares de muçulmanos participam da primeira oração.
Controle nas redes sociais
Em 1º de outubro, entra em vigor lei que fortalece o controle das autoridades sobre as redes sociais. Quase todas as gigantes do setor se recusam a aceitar as medidas, o que pode gerar multas a partir de novembro.