Uma relação que se estende praticamente por 500 anos, com uma história de afinidades, admiração mútua e até uma dose de paixão, passa hoje por um momento como os que vivem alguns casais quando opções e interesses parecem distanciar-se — a hora da chamada “DR”.
As notícias das últimas semanas sobre queimadas e desmatamento na Amazônia alimentaram um bate-boca público, com termos duros e ofensas pessoais, entre o presidente Jair Bolsonaro e o colega francês, Emmanuel Macron. De ambos os lados, há quem receie que a quebra do encanto entre os dois governos possa afetar projetos bilaterais de cooperação, em especial na área militar, e empreitadas de alcance multilateral, como o acordo de livre comércio entre União Europeia (EU) e Mercosul.
No auge da controvérsia, Macron levou à reunião de cúpula do G7 a noção de que o fogo na maior floresta tropical do mundo seria uma crise internacional. Chegou a colocar em discussão a soberania brasileira sobre a Amazônia. No Brasil, foi aventada a possibilidade de chamar para consultas o embaixador em Paris, uma medida prevista na liturgia diplomática para expressar desagrado. Como já tinha feito quando da assinatura do acordo, o presidente francês voltou a relacionar a ratificação do acordo comercial à postura do governo brasileiro quanto aos compromissos assumidos como signatário do Acordo de Paris sobre mudanças climáticas.
Um diplomata europeu que acompanhou as longas negociações EU-Mercosul quando representou seu país na sede do bloco, em Bruxelas, disse duvidar que Macron chegue efetivamente a obstruir a ratificação. Pressionado internamente por uma onda de protestos, na virada do ano, o presidente francês dá sinais de que aposta em firmar uma liderança própria no cenário continental e sair da sombra da chanceler (chefe de governo) alemã, Angela Merkel. Esse observador lembra, porém, que o sistema continental tem meandros que permitem a um país-membro, em especial com o peso diplomático da França, “retardar o andamento, questionar aspectos específicos, propor alterações, enfim, colocar cascas de banana, como vocês costumam dizer no Brasil”.
Projetos bilaterais
No horizonte imediato, as preocupações se concentram sobre um conjunto de projetos bilaterais de cooperação na área de defesa, considerados especialmente importantes pelos militares brasileiros. O mais crítico é o desenvolvimento do primeiro submarino de propulsão nuclear, sonho antigo e parte de um acordo que prevê a transferência de tecnologia francesa e a construção de mais cinco veículos convencionais — o primeiro lançado em dezembro último e o segundo previsto para 2020. Também no ano que vem, deve começar a produção do veículo nuclear, com conclusão prevista inicialmente para 2029.
Além do Programa de Desenvolvimento de Submarinos (Prosub), Brasil e França mantêm acordos sobre aquisição e fabricação de helicópteros, concentrados em uma unidade instalada pela Helibras em Itajubá (MG). São projetos longamente discutidos e que deslancharam, em boa parte, graças à relação pessoal fluida entre os presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Nicolas Sarkozy, na década passada. Na época, os franceses só não conseguiram também vender os caças de última geração Rafale, entre outros fatores, graças à preocupação dos militares com a concentração de programas em um único parceiro — e a escolha recaiu sobre o Gripen, em parceria com a Suécia.
Outra diplomata europeia, que acompanhou de posição privilegiada a “lua de mel” entre Brasília e Paris no governo Lula, vê a crise no “casal” pela perspectiva da reaproximação acentuada do presidente brasileiro com os Estados Unidos de Donald Trump. Ela cita como exemplo a recente venda para a Boeing da indústria aeronáutica brasileira Embaer, que conquistou importantes nichos de mercado com aviões comerciais e militares, como o SuperTucano. “Talvez Macron sinta algum ‘ciúme’ do flerte entre Bolsonaro e Trump”, sugere, em tom de brincadeira.