A morte do cantor baiano João Gilberto, aos 88 anos, ocorrida no sábado, não é apenas a morte de um artista, é um ponto final na história do protagonista por excelência da música brasileira em mais de meio século. Ícone da bossa nova, inventor de uma maneira de cantar e tocar violão, influenciador de gerações, desbravador de caminhos para toda a melhor MPB que o sucedeu. Coisas como essas já foram escritas sobre João Gilberto ao longo do fim de semana para dar uma dimensão da grandeza do artista, uma tarefa algo inglória e fadada desde o início à incompletude, já que a maior parte do que se escreveu sobre a MPB da segunda metade do século 20 em diante é um capítulo disfarçado da biografia de João Gilberto.
João nasceu em Juazeiro, na Bahia, em 1931. Estreou em disco em 1959, com Chega de Saudade, que, junto aos álbuns seguintes, O Amor, o Sorriso e a Flor (1960) e João Gilberto (1961), ajudaram a criar, popularizar e internacionalizar a bossa nova.
O impacto de seu modo ciciante de cantar (em contraposição aos cantores de peito aberto como Francisco Alves, Orlando Silva ou Vicente Celestino, que dominaram a pregressa grande Era do Rádio) foi tal que praticamente tudo se reorganizou à sua volta. A maioria seguiu seus passos (como Caetano, Gil, Roberto Menescal e a torcida do Flamengo) enquanto muita coisa se definiu em oposição a ele (como o rock pioneiro de Raul Seixas).
Ao recordar, no livro de memórias Noites Tropicais, a descoberta de João Gilberto pela sua geração na juventude, Nelson Motta fez um elogio entusiasmado (como quase todos os elogios feitos a João Gilberto ao longo dos anos):
“A bossa nova era a trilha sonora que nos faltava, que nos diferenciaria dos ‘quadrados’ e dos antigos, dos românticos e melodramáticos, dos grandiloquentes e dos primitivos, dos nacionalistas e regionalistas, dos americanos. Tínhamos uma música que imaginávamos só para nós. João Gilberto era nosso pastor e nada nos faltaria”.
Ruy Castro, em Chega de Saudade, o livro mais próximo de uma “biografia autorizada” que já se teve de João Gilberto, também relata o impacto que a descoberta de João Gilberto teve para parte da juventude nacional: “Na época não se tinha consciência disso, mas depois se saberia que nenhum outro disco brasileiro iria despertar em tantos jovens a vontade de cantar, compor ou tocar um instrumento.
É uma afirmação que já foi corroborada por vários artistas da MPB, entre eles Gilberto Gil e Caetano Veloso – Caetano conta, em seu Verdade Tropical, que, quando estudante ginasiano em Santo Amaro da Purificação, fazia parte de um pequeno “culto a João Gilberto” se reunia em um boteco chamado Bar do Bubu:
“Bubu (o dono do bar) gostar de João Gilberto era apenas o primeiro sinal de que eu, Chico Motta, Dasinho e Bethânia não estávamos sós no entusiasmo da nossa descoberta”, relembra Caetano.
Últimos anos foram de reclusão e problemas
O fim de sua vida teve notas tristes. Perfeccionista a ponto de sofrer devido à acústica deficiente de um espaço de shows, ele encerrou as turnês ao vivo em 2008, e, em seus últimos anos, viveu com problemas financeiros e teve de lidar com um longo processo contra a gravadora Universal Music, acusada de esvaziar o patrimônio da EMI justamente para não lhe pagar os devidos créditos.
Em março deste ano, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ) confirmou a vitória do músico em segunda instância.
Em sua etapa final, João havia sido interditado a pedido da própria filha, a também cantora Bebel, 52 anos, que voltou ao Rio depois de 26 anos em Nova York. A decisão provocou uma discordância pública entre Bebel e seu irmão João Marcelo.
Tumultos pessoais que não apagam o legado do artista: um personagem que marcou de tal modo a paisagem musical brasileira que é impossível imaginá-la sem ele. Cada novo mergulho na história da MPB atesta a sua influência, como um longo veio do qual seis décadas de músicos, aqui e lá fora, foram retirando preciosidades.