Acordo acertado por premiê e Estados-membros da UE vai a votação no Parlamento britânico, sob forte suspeição de parte dos parlamentares; rejeição dos termos colocaria país em território não navegado
Por BBC
O Brexit, processo de desvinculação do Reino Unido da União Europeia, deve ter nesta terça-feira seu dia mais decisivo até agora: o Parlamento britânico vai votar a proposta de acordo de saída elaborado pela premiê Theresa May e os demais líderes da UE.
E não será uma votação fácil. Os parlamentares britânicos darão sua opinião a respeito de temas espinhosos que foram negociados ao longo do último ano e meio, como a livre circulação de pessoas no pós-Brexit, o funcionamento das fronteiras (em especial a fronteira entre a Irlanda e a Irlanda do Norte) e a “conta do divórcio” – quanto o Reino Unido terá de pagar aos europeus continentais pela saída.
A previsão anterior era de que o acordo fosse votado no dia 11 de dezembro, mas na véspera May retirou o tema da pauta, admitindo que a expectativa era de que os parlamentares o rejeitassem “por uma margem significativa”. May afirmou, também, que concentraria seus esforços em explicar os termos do acordo aos parlamentares, sobretudo em relação à fronteira norte-irlandesa.
Se vencer o “sim” pelo acordo – o que acredita-se ter poucas chances de ocorrer –, passam a valer os termos acertados por May no processo de desvinculação da UE. Já o “não” traz consigo uma gama de possibilidades e incertezas sobre as relações britânico-europeias.
Após membros do partido Trabalhista dizerem que a primeira-ministra enfrentaria uma “derrota humilhante” na votação, Theresa May afirmou, na segunda-feira, que opositores a seu acordo do Brexit estariam arriscando “decepcionar o povo britânico”.
Ninguém sabe ao certo como o Brexit vai acabar, mas a votação revelará a dimensão da oposição no Parlamento à proposta de Theresa May – e mostrará se ela tem um plano B caso o acordo não passe.
A seguir, as principais dúvidas sobre o que está em jogo e como a sucessão de eventos definirá tanto o futuro do Brexit quanto o de May.
- Começando do básico: o que será o Brexit?
O Reino Unido deverá deixar a União Europeia às 23h de 29 de março de 2019, como consequência de um plebiscito realizado em 2016, quando 51,9% do eleitorado britânico votou pelo rompimento com o bloco europeu.
Passado mais de um ano de tentativas de negociações sobre o “divórcio”, os dois lados conseguiram chegar a um acordo preliminar em novembro, que foi aprovado pelos 27 Estados-membros da UE, mas ainda precisa da aprovação do Parlamento britânico.
Só que o acordo gerou intensos debates no Reino Unido. No dia seguinte ao anúncio do acerto, houve uma onda de demissões entre os ministros de May, que discordaram dos termos. O então secretário para o Brexit, Dominic Raab, pediu demissão afirmando que o acordo tinha “falhas fatais”.
- Em que consiste o acordo?
Eis alguns pontos principais do que foi acertado por May com Bruxelas:
– Direitos dos cidadãos após o Brexit: a ideia é que os britânicos morando na UE e europeus que moram no Reino Unido possam continuar a trabalhar e estudar onde tenham residência, além de poderem trazer consigo membros da sua família, embora nem todos os pontos dessa questão tenham sido decididos.
– Período de transição: irá durar 21 meses após a saída do Reino Unido, para dar tempo de os dois lados acertarem um acordo quanto às trocas comerciais bilaterais. Um documento futuro traçará as linhas gerais das relações britânico-europeias.
– A “conta do divórcio”: o Reino Unido terá de pagar até 39 bilhões de libras (cerca de R$ 190 bilhões) como compensação financeira à UE.
– Irlanda do Norte: o ponto mais delicado do acordo. A questão é que a fronteira entre a República da Irlanda (país independente e membro da UE) e a Irlanda do Norte (parte do Reino Unido) passará a ser, após o Brexit, uma fronteira entre a UE e o Reino Unido.
Como o Reino Unido e a Irlanda faziam parte de um mercado comum e uma mesma unidade aduaneira, a circulação de produtos e pessoas era livre entre os dois países – e na fronteira por terra entra Irlanda e Irlanda do Norte.
Mas depois do Brexit, isso vai mudar, pois as duas partes da Irlanda estarão sob regimes regulatórios diferentes, o que significa que mercadorias e pessoas teriam de ser checadas na fronteira.
O governo britânico Reino Unido teme que checagens na divisa tragam à tona antigas tensões entre irlandeses e norte-irlandeses. O acordo de paz de 1998 que pôs fim a três décadas de sangrentos conflitos entre nacionalistas (que queriam a integração com a Irlanda) e unionistas (que queriam continuar fazendo parte do Reino Unido) na Irlanda do Norte e contempla a ausência de barreiras físicas com a Irlanda – que aceitou, no acordo, que o Norte faz parte do Reino Unido até que haja decisão em contrário pela população local.
Embora Londres e Bruxelas tenham acordado, desde o princípio, em não fixar uma fronteira “dura” (ou altamente controlada) na divisa irlandesa, o grande obstáculo foi definir os termos para tal.
Para isso, ficou acordado que haverá uma espécie de “escudo” – uma rede de segurança, chamada em inglês de “backstop” – impedindo que haja rígido controle aduaneiro na fronteira, caso um futuro acordo comercial entre UE e Reino Unido demore a ser concebido.
Esse “backstop” prevê que a Irlanda do Norte continuará alinhada a algumas regras aduaneiras da UE, para dispensar a necessidade de checagem na fronteira com a Irlanda, mas exigirá que alguns produtos vindos do restante do Reino Unido sejam sujeitados a controles.
O “backstop” também envolverá uma união aduaneira temporária, o que, na prática, mantém a UE e o Reino Unido dentro de um mercado comum – contrariando, para alguns, o princípio básico do Brexit.
Isso gerou críticas de diversos políticos britânicos – alguns não querem ser sujeitos a regras aduaneiras da UE e outros acreditam que o resultado pode ser a fratura territorial do Reino Unido e o isolamento da Irlanda do Norte.
Theresa May, no entanto, disse ter conseguido novas garantias por escrito da UE de que o regime alfandegário de contingência proposto seria temporário e, se alguma vez fosse acionado, duraria “o menor tempo possível”.
- Qual a expectativa para a votação do Parlamento britânico?
O dia da votação será o mais importante para o Brexit desde o plebiscito de 2016. A BBC prevê que May sofra a maior derrota que qualquer governo britânico enfrentou nos últimos cem anos. Muita pressão será feita por May e por seus ministros até o último segundo para reduzir o tamanho da derrota.
Os trabalhistas e os outros partidos da oposição devem votar contra o acordo, enquanto cerca de cem parlamentares conservadores e os dez parlamentares do Partido Democrático Unionista (DUP, na sigla em inglês) também podem se juntar a eles. O Parlamento tem 650 deputados.
- E se o acordo for rejeitado?
Se May conseguir costurar uma maioria para aprovar o acordo, o vínculo entre UE e Reino Unido ruma para o fim em 29 de março. Porém, se a maioria dos parlamentares votar contra o acordo, diferentes cenários podem se concretizar.
Eis os mais prováveis deles:
– O Reino Unido pode deixar a UE sem firmar nenhum acordo com o bloco – Essa possibilidade é descrita por alguns analistas como uma opção extrema, uma vez que do dia para noite serão eliminados controles de fronteiras, procedimentos migratórios e comerciais sem que se tenha nenhuma ideia ou consenso de como eles ficarão.
– Uma grande renegociação pode ser deslanchada – algo que exigiria tempo e esforço para voltar à mesa de debates e convencer os 27 Estados-membros europeus. Uma opção é alterar o Artigo 50, instrumento legal que fez deslanchar o processo de saída da UE e que agendou essa saída para 29 de março de 2019, adiando esta data.
– Uma eleição geral pode ser convocada no Reino Unido – Theresa May pode acabar decidindo que a melhor forma de sair do impasse é chamando os eleitores britânicos às urnas, na tentativa de obter um número expressivo de votos e, dessa forma, conquistar força política para implementar seu acordo. A convocação de uma eleição geral depende, porém, do apoio de dois terços do Parlamento. Também seria necessário estender o prazo de saída da UE.
– Governo pode ser alvo de novo voto de desconfiança – Se o acordo proposto for rejeitado, os membros do Partido Trabalhista já indicaram que pedirão um voto formal de desconfiança no governo. May poderia até pedir pelo voto ela mesma (nesse caso, na tentativa de reforçar sua autoridade).
Em dezembro, May venceu um voto de desconfiança movido no interior de sua própria sigla, o Partido Conservador, por 200 votos a 117. A margem de 83 votos significa que 63% dos deputados conservadores apoiaram a premiê e 37% votaram contra ela.
Esse voto foi motivado por cartas de 48 parlamentares de seu partido insatisfeitos com sua condução do Brexit (a saída do Reino Unido da União Europeia), que, segundo eles, iria contra o desejo da população no referendo de 2016. Se perdesse a votação, ela deixaria a liderança do Partido Conservador e, como consequência, o comando do governo. Nesse cenário, haveria uma eleição entre os membros do partido para escolher um novo líder.
Hoje, as regras mostram que pode haver vários resultados possíveis caso o governo perca um voto formal de desconfiança.
Nesse caso, grupos alternativos de governo (seja um conservador, sob um novo premiê, um de coalizão ou um de minoria, sob um novo partido) teriam 14 dias para se viabilizar e tentar vencer um subsequente voto de confiança. Se nenhum deles conseguisse, haveria uma eleição geral antecipada. A data mais próxima para uma eleição seria 25 dias úteis depois.
No entanto, se esse novo governo ganhar o voto de confiança dentro desse período de duas semanas, ele passa a governar – e a reconduzir o Brexit.
– Um novo plebiscito pode ser convocado, o que também provavelmente exigiria a extensão do Artigo 50, para dar tempo de aprovação de uma nova proposta e para que a Comissão Eleitoral britânica possa se posicionar.
- Como o Brexit deve acabar?
Ninguém sabe.
Resumindo, mais de dois anos e meio depois do plebiscito, os deputados ainda não chegaram a um consenso sobre o tipo de divórcio que querem da União Europeia e sobre como será sua relação depois da separação.
O problema mergulhou o Reino Unido em sua mais profunda crise política desde 1945. E analistas temem que uma saída sem acordo crie um tsunami político sobre a Europa, com possíveis consequências para a integridade da Uniao Europeia.