Adriana Lombardo
Karoshi (ka = demasiado; ro = trabalho; shi = morte) é uma palavra japonesa que significa “morte por excesso de trabalho“. Trata-se da morte súbita ocupacional, causada principalmente por doenças cardíacas e derrame. Está associada às horas exaustivas no emprego de qualquer funcionário que trabalha uma média de 65 horas por semana ou mais por mais de 4 semanas ou, em média, 60 horas ou mais por semana por mais de 8 semanas.
O Japão é um país com uma história de dedicação, foco, disciplina, resiliência e superação. Reergueu-se depois da derrota amargada na Segunda Guerra Mundial e, diversificando sua economia – antes baseada na agricultura, na mineração e na pequena manufatura industrial– logo se transformou em uma potência global. No período do pós-guerra, com a rápida intensificação da produção industrial, ganhou destaque a figura do empregado assalariado, leal à sua empresa e trabalhando incansavelmente por resultados, inclusive como forma de retribuir a confiança e, ao mesmo tempo, cumprir o papel de apoiador do progresso nacional.
Hoje em dia, esse papel ainda é considerado importante pelos trabalhadores japoneses. No entanto, com o aumento dos riscos e das ocorrências relacionadas à saúde ocupacional, tem ganhado espaço o debate sobre as políticas organizacionais, que aponta cada vez mais para a necessidade de investir para garantir maior equilíbrio entre vida pessoal e profissional e adequar a legislação trabalhista. O Japão é um dos países desenvolvidos com jornadas de trabalho mais extensas, inclusive contando com horas-extras, muitas vezes não remuneradas, uma prática aceita nas corporações japonesas. De acordo com vários estudos e enquetes, a maioria dos trabalhadores japoneses deixa de lado seus afazeres pessoais ou familiares a qualquer hora se receber alguma solicitação de seus chefes para realizar ou completar uma tarefa.
No ano passado, ao visitar várias cidades do país, principalmente em Tóquio, reparei que vários japoneses dormiam nas estações ou nos vagões do metrô. Descobri que a habilidade dos japoneses de “tirar cochilos” breves em qualquer lugar é chamada de inemuri e que isso é amplamente tolerado e até visto como algo positivo, pois é geralmente percebido como o resultado de muito esforço de trabalho ou estudo. Por outro lado, em muitos casos, o inemuri poderia ser, de fato, consequência do esgotamento físico e mental que, direta ou indiretamente, pode comprometer o bem-estar individual, familiar e social. Prova disso é que o governo japonês reconheceu a ocorrência de 236 karoshis no ano financeiro de 2017, bem como 208 karojisatsus, ou seja, suicídios de trabalhadores, causados por problemas mentais relacionados ao estresse no trabalho.
O primeiro caso de karoshi foi documentado em 1969, com a morte de um rapaz de 29 anos que trabalhava em um departamento de transporte no Japão. Em 1982, o lançamento do livro intitulado “Karoshi”, de Tajiri, Seiichiro, Hosokawa e Uehata, levou esta questão social para a atenção da opinião pública. Ainda que tenha sido ampliada a sensibilização quanto ao tema, encontrar a solução ainda é complexo. Algumas empresas já realizaram ações para reduzir esse problema, tais como: limite de horas-extras; veiculação, a cada hora depois do término do expediente, de mensagens gravadas convidando os trabalhadores a retornarem para suas casas; café da manhã no trabalho a fim de iniciar a jornada mais tarde e obrigatoriedade de sair do escritório até às 17h30, em alguns dias da semana. No entanto, algumas dessas medidas não têm sido efetivas, pois muitos profissionais continuam trabalhando, incentivados pela cultura de competitividade, e decidem por não aderir aos programas de apoio. Há ainda quem, por opção própria, prefira continuar no trabalho para ganhar horas-extras e com isso equilibrar melhor as despesas.
Em várias organizações japonesas, soma-se ao acúmulo de horas trabalhadas, um ambiente de trabalho de elevada rigidez, e muitas vezes uma liderança inflexível e autoritária. No entanto é importante ressaltar que a autodepreciação, a humilhação e a crítica excessiva sofridas no ambiente de trabalho, combinadas com a percepção do fracasso diante da dificuldade em atingir metas muito elevadas, geram doenças e mortes, no Japão e em qualquer outro país do mundo. De acordo com uma estimativa de 2017 da International Stress Management Association (Isma), a síndrome do esgotamento profissional, também conhecida como síndrome de burnout, afeta 30% dos mais de 100 milhões de trabalhadores brasileiros. Com a crescente difusão e contínua evolução das tecnologias de comunicação e informação, que levam cada vez para a palma da mão e para sua casa o trabalho que deveria ser desempenhado no escritório, esse tipo de problema pode vir a se difundir cada vez mais no Brasil, embora aqui a cultura de trabalho seja bem diferente daquela do Japão – certamente mais flexível em termos de desempenho profissional e lealdade empresarial.
Para que o karoshi não continue sendo um problema social em expansão, o governo, as empresas e as associações dos trabalhadores precisam desenvolver um conjunto de ações mais incisivas. Cabe ao governo demandar o cumprimento obrigatório dos limites de horas extras máximos estabelecidos pelo Ministério da Saúde, Trabalho e Bem-Estar, estabelecer multas pelo descumprimento e, pelo menos no início, fazer auditorias. Nesse sentido, acredito que será fundamental, para as empresas japonesas, construir e disseminar novos valores culturais, individuais e coletivos, tais como o bem-estar e a felicidade, que equilibrem os valores dominantes de lealdade empresarial e dedicação profissional, podendo até gerar melhores resultados em termos de desempenho, no médio e longo prazo. Momentos de pausa para relaxamento, massagem, meditação e ginástica laboral durante a jornada são opções que recomendo; além da oferta de benefícios ligados ao entretenimento e reunião familiar, como ingressos para filmes e shows de música.
Diante dos riscos gerados por longas e intensas jornadas de trabalho, especialmente durante períodos de crise econômica e ocupacional, que facilitam a expansão do trabalho remoto via internet, governos e empresas precisam investir na disseminação de um novo mindset profissional, de modo a contribuir para mudar padrões culturais e hábitos pessoais e profissionais que afetam o bem-estar dos trabalhadores e comprometem o componente social do desenvolvimento sustentável. Nesse contexto, no âmbito do orçamento empresarial, os custos associados com iniciativas de desenvolvimento humano e organizacional (tais como treinamentos para os gestores e equipes, palestras motivacionais, coaching, mentoring etc.), e com iniciativas de apoio ao bem-estar individual e coletivo (assistência médica, nutricional, física e psicológica), deveriam ser contemplados na categoria geral dos investimentos e incentivados por políticas e estratégias coerentes com a missão da empresa, mas alinhadas com a agenda de desenvolvimento sustentável.
Adriana Lombardo é administradora de empresas, com MBA em Gestão de Projetos e mestrado em Desenvolvimento, Sociedade e Cooperação Internacional. É Coach Transcultural, Neurocoach, consultora empresarial, co-autora de cinco livros, e tem artigos publicados em revistas, no seu blog e na Harvard Business Review.
Mais informações: http://www.adrianalombardo.com