Ana Cristina Dib
O Brasil não precisa assumir uma posição contra ou a favor de um ou de outro na guerra comercial lançada pelos Estados Unidos contra a China. O Brasil tem se beneficiado enormemente de suas relações com o gigante asiático a partir de 2003 e somente em 2017 a China investiu US$ 11 bilhões no Brasil. E o que antes ia apenas para alimentos e energia, agora vai para telecomunicações, setor automotivo e serviços financeiros. O raciocínio faz parte de uma análise sobre o contencioso comercial entre as duas superpotências por André Cruz, Gerente de Acordos Comerciais da Thomson Reuters.
André Cruz destaca que o aumento do fluxo de investimentos da China para o Brasil não é consequência da disputa entre Washington e Pequim: “a guerra comercial não dispara esse processo, ela apenas o estimula, é um caminho sem volta. De tudo o que a China investiu no exterior entre 2005 e 2017, 55% veio para o Brasil, ou seja, dizer que a guerra com os USA vai criar benefícios para o nosso país não é a mais pura verdade, já temos visto tais benefícios em larga escala ocorrendo há alguns anos”.
Outro dado relevante é citado pelo especialista: “há apenas 10 anos, a China representava 6,7% das exportações brasileiras, enquanto os USA estavam na casa dos 16%. Esse cenário foi se invertendo ferozmente e, hoje, a China já compra aproximadamente 20% de tudo o que o Brasil exporta. Ou seja, com ou sem guerra comercial, estamos diante de um trem em alta velocidade que começou a sua aceleração há uma década e vai demorar para desacelerar novamente”.
Na avaliação de André Cruz, o que a China tem feito nas últimas décadas é, principalmente, ocupar um vácuo deixado pelos Estados Unidos: “o estreitamento das relações entre China e América Latina não surgiu da noite para o dia, e é sempre importante lembrar que os EUA têm sistematicamente negligenciado a região ao longo de anos. Merece destaque o fato de que houve especial desinteresse na região por parte do ex-presidente Barack Obama, o que criou um verdadeiro leque de oportunidade para a China”.
Um dado impressionante é citado pelo analista para mostrar a importância crescente da China para o comércio exterior da região e do Brasil em especial e para mostrara que o Brasil não terá que fazer uma escolha entre os Estados Unidos e a China em suas ações de comércio internacional: “o comércio bilateral entre China e América Latina cresceu nada menos do que 2.400% entre os anos de 2000 e 2013, fazendo com que a dominação chinesa na região tornasse simplesmente desnecessário que o Brasil tenha que tomar alguma posição sobre um lado nessa guerra comercial. A China já é inquestionavelmente o maior parceiro comercial do Brasil e isso aconteceu pelas mãos do próprio mercado e não pela intenção de agentes governamentais em tomar partido do lado chinês”.
Apesar de mostrar preocupação com os reflexos colaterais da disputa comercial EUA-China sobre a globalização, o especialista da Thomson Reuters não considera a possibilidade de essa disputa vir a causar danos sérios e irreversíveis à globalização.
E justifica: “a definição de globalização abrange muitos aspectos, que, em geral, não são nada simples de serem identificados. Mas segundo estudos realizados pelo economista turco Dani Rodrik, o mundo experimentou duas grandes ondas da globalização até o momento, a primeira delas se deu entre 1870 e 1913. Foi liderada pelos ingleses, e fez o PIB mundial despencar de uma faixa de 17% (em 1870) para 6% (em 1938) até retornar ao patamar de 17% novamente (em 1990), que é justamente a segunda onda da globalização, essa liderada pelos americanos e a que vivemos atualmente.
Segundo os estudos do professor Rodrik, foi justamente o protecionismo, o declínio econômico, o nacionalismo exacerbado e, evidentemente, a segunda guerra mundial, os elementos responsáveis pelo fim da primeira onda. A diferença entre o que culminou com o declínio da primeira onda e o que pode culminar com o declínio da segunda, é que no primeiro caso, a guerra era bélica, agora ela é comercial”.
A preservação da globalização se deverá também ao fato de que o centro de gravidade econômica do mundo, que na década de 80 estava concentrado nos Estados Unidos, agora está vigorosamente sendo mudado para as Américas e segundo estudos realizados pelo Credit Suisse, a expectativa é de que até 2050 esse centro de gravidade esteja 100% concentrado sobre a China, o que poderia ser o início de uma terceira onda da globalização.
Por isso, André Cruz acredita que “em resumo, a globalização não vai acabar, ela vai se modificar. Mas vai continuar existindo, pois, todos os recursos são limitados e não existe país no mundo que produza tudo o que precisa. A interdependência entre os atores internacionais é uma questão de sobrevivência”.
André Cruz critica a adoção de medidas protecionistas, como a sobretaxação de produtos chineses pelo governo do presidente Donald Trump e revela que o protecionismo não é a solução para tratar divergências comerciais: “o efeito de tarifas contra exportações é variável ao longo do tempo. No curto prazo, os preços mais altos das mercadorias podem reduzir o consumo dos consumidores individuais e das empresas.
Durante este período, algumas empresas irão lucrar, e o governo verá um aumento na sua receita de impostos. No longo prazo, essas empresas podem ver um declínio na eficiência devido à falta de concorrência, e também podem ver uma redução nos lucros devido ao surgimento de substitutos para seus produtos. Para o governo, o efeito a longo prazo é o aumento da demanda por serviços públicos, uma vez que os aumentos de preços, especialmente em alimentos, deixam menos renda disponível”.
E aproveita para passar um recado ao Brasil, indiscutivelmente um dos países mais fechados e protecionistas do mundo: “equilíbrio comercial se busca com incentivo à produtividade e tecnologia de alta qualidade para que mais produtos possam competir em pé de igualdade no cenário internacional. Hoje o Brasil já é um país extremamente fechado e podemos ver que a situação econômica na qual nos encontramos não é das mais favoráveis. Ou seja, não seria tomando as mesmas decisões protecionistas que essa situação passaria a ser diferente”.