O “descaminho do vinho” é a entrada ilegal do vinho no Brasil. É caracterizado por uma ação lesiva à economia brasileira além de ser prejudicial ao consumidor, considerando as condições inadequadas do armazenamento e do transporte. Estão interligadas as práticas do descaminho e das fraudes. Com relação às fraudes, segundo as Autoridades Aduaneiras, as garrafas são rotuladas como vinhos ícones de produção especial, quando, no entanto, são de qualidade inferior.
Segundo a Receita Federal, “o descaminho (artigo 334 do Código Penal) ocorre quando um produto que deveria ser importado legalmente é introduzido no país de forma ilegal … e associação criminosa (artigo 288 do Código Penal) quando as quadrilhas se organizam e comercializam no mercado.” Hoje em dia, quase que diariamente, vemos notícias de grandes quantidades de vinhos traficados sendo apreendidos pelas Polícias Federal e Aduaneira em ação conjunta com outros órgãos governamentais.
A fraude nos vinhos sempre existiu. Talvez estejamos mais cientes dessa prática nos últimos anos por conta da facilidade de acesso às informações. Há 20 anos, as mercadorias do descaminho eram concentradas em cigarros, whiskies, perfumes e eletrônicos, e atualmente, em armas de fogo, azeites, medicamentos, agrotóxicos (20%) e vinhos (60%). A evolução da apreensão dos vinhos é a seguinte em garrafas: em 2018 – 45.805; em 2019 – 87.575; em 2020 – 280.044; em 2021 – 595.239, dados da Receita Federal.
Visando desarticular grupos de contrabandistas em investigações que apuram a entrada ilícita de vinhos em território nacional, foram divulgadas várias operações das polícias, algumas ainda não divulgadas e outras já conhecidas com nomes alusivos como “Dionísio 1 e 2”, “Operação Evoé. A “Operação Dioníso”, deflagrada em fevereiro de 2021, apreendeu em apenas uma semana 27 mil garrafas de vinhos. Em agosto de 2022, na “Operação Dionísio 2”, em parceria com a Administración Federal de Ingresos Públicos, órgão argentino responsável pela execução da política tributária e aduaneira, foram apreendidos mais de 30 mil garrafas de vinhos contrabandeadas.
Na “Operação Vino” e “Descendentes de Vino” foram deflagradas nas cidades de Tiradentes do Sul e Três Passos no Rio Grande do Sul local onde apreenderam, em maio de 2021, cerca de 9 mil garrafas de vinhos argentino. Nessas cidades, os vinhos argentinos eram trazidos de barco, pelo rio Uruguai, e depois de vendidos pela internet, eram despachados via transportadoras e Correios para os compradores em todo o Brasil.
A operação “Operação Evoé” foi a última divulgada. Deflagrada em 29 e setembro de 2022, apreendeu estoque de 20 mil garrafas de vinhos importados ilicitamente e sem garantia de qualidade, com valor estimado em R$ 10 milhões, que seriam comercializados nas redes sociais, em restaurantes, em Goiás, em Minas Gerais, no Distrito Federal e nas gôndolas do Mercado Municipal de São Paulo.
A Polícia Federal identificou a “rota do vinho ilegal” por onde entram vinhos elaborados na Argentina e no Chile, que fica nas cidades fronteiriças de Dionísio Cerqueira, São José do Cedro e Guarujá do Sul em Santa Catarina, nas cidades de Pato Branco, Francisco Beltrão, Santo Antônio do Sudoeste e Barracão no Paraná e nas cidades de Tiradentes do Sul e Três Passos no Rio Grande do Sul.
Foram identificados, também, três portos secos que são, Mundo Novo/MS, Foz do Iguaçu/PR e DionísioCerqueira/SC. A maioria tendo ligação com lojas de vinhos na cidade de Bernardo de Irigoyen na Argentina. Uma das fraudes funciona assim: os vinhos de vinícolas menos conhecidas da Argentina e do Chile são trazidos para o Brasil e aqui recebem rótulos de vinícolas de luxo que elaboram vinhos raros e emblemáticos, naturalmente, os mais desejados pelos consumidores. Segundo a revista Adega, a troca de rótulos, de rolhas e cápsulas acontece em galpões com maquinário para falsificação e impressão de etiquetas, além dos selos dos órgãos federais brasileiros, tornando, assim, lícito aquelas falsas garrafas.
Nesses galpões de estruturas clandestinas, o vinho é armazenado inadequadamente, sem ventilação, sem controle térmico e sem nenhum cuidado sanitário, em meio a animais e muitas vezes, juntamente com outros produtos traficados, inclusive, agrotóxicos.
A revista Adega nº 201 publicou, “Foram feitas prisões de pessoas ligadas ao comércio ilegal de vinhos, que está vinculado a grupos criminosos como o Primeiro Comando da fronteira (ligado ao Primeiro Comando da Capital-PCC), o Comando Vermelho e o Bala na Cara … A investigação das polícias aponta que o contrabando de vinho estaria rendendo milhões de reais aos grupos criminosos.”
As causas principais para o crescimento do descaminho do vinho são, inicialmente, o aumento do consumo de vinho de qualidade, cuja procura favorece o mercado para falsificações; pessoas de alto poder aquisitivo que querem entrar para o mundo dos colecionadores; lucro com a diferença entre o câmbio oficial x paralelo; falta de rastreabilidade; alta tributação aduaneira; falta de fiscalização; facilidade de divulgação e falta de regulamentação nas redes sociais (e-commerce, WhatssApp e marketplaces), que tornou um canal usado para venda sem controle tributário com valores abaixo dos praticados pelo mercado. Fácil assim: o cidadão anuncia, vende e entrega ao consumidor sem nota fiscal,sem garantia de origem e fica por isso mesmo. Existem, ainda, páginas de leilões de vinhos onde é comum vender garrafas falsificadas. Isso não significa que todas sejam, que fique bem claro aqui.
Conhecemos sites de e-commerce que têm especialistas dedicando em autenticar os vinhos garantindo sua origem. A venda de vinhos ilegais ocorre inclusive pelos varejistas, restaurantes e pelos distribuidores. Sobre distribuidores em Brasília, o jornal Metrópoles de 29/06/2021, dá conta de que a Polícia Federal descobriu que a RSX Informática, empresa do ramo de Tecnologia da Informação (TI), estava envolvida em fraudes e licitações no Governo do Distrito Federal (GDF) e lavava dinheiro em lojas e importadora de vinhos. Assim explica a Polícia Federal: “Para lavar o dinheiro desviado dos órgãos públicos, os investigados se valeram de lojas de vinhos. Somente uma delas recebeu transferências de mais de R$ 3 milhões da empresa de TI investigada, num curto período de 4 meses”.
Em São Paulo, um caminhão contendo um contêiner com vinhos da importadora Zahil foi roubado no dia 29 de agosto de 2022 na Rodovia Anchieta. Foram levadas 12.000 garrafas de vinhos argentinos, todas da vinícola Rutini. A importadora divulgou os números dos lotes a fim de que não sejam comercializados. São o Cabernet Sauvignon 2018 (20329), o Merlot 2018 (21238), o Cabernet-Malbec 2019 (lote 21356), e o Malbec 2019 (21004).
Temos notícias de vinícolas que estão destinando parte de seus recursos para evitar falsificações. Citando aqui os vinhos da DOC Sicília/Itália que, desde 01/01/2022 passaram a receber rótulo com código digital alfanumérico único, garantindo a origem e rastreabilidade. Antonio Rallo, presidente do conselho de administração do Consorzio di Tutela Vini Doc Sicília disse que “O crescimento da venda dos vinhos DOC Sicília em todo o mundo aumentou significativamente o risco de falsificação e o uso indevido da denominação em mercados estrangeiros. A introdução dos códigos digitais protege, assim, consumidores e produtores que respeitam as regras das marcas DOC Sicília.” Mas, como perceber que estamos diante de uma garrafa falsificada? Segundo o Sommelier Marcos Rachelle, É praticamente impossível para o consumidor comum detectá-lo na avaliação sensorial. Nós especialistas temos mais chances de perceber, mas também não somos infalíveis. Se não conhecemos um determinado vinho, como identificar sua origem?”
E você, leitor, como identificar um vinho falsificado? Temos aqui dicas da Dra. Cristiane Foja, Presidente-executiva da Associação Brasileira de Bebidas (Abrabe). Confira aí: A primeira dica é o contra-rótulo estar em português, isso é lei. Garrafa de vinho que não tem o contra-rótulo em português não foi importada legalmente. A segunda é o número do registro do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa). Esse registro garante que o vinho passou pelos testes químico e sensorial e está apto a ser consumido. Esse teste é feito por amostragem em lotes de vinhos importados.
Outro item importante a observar é o preço. Desconfie de preços muito baratos para os vinhos que são, de fato, caros, aqueles vinhos que têm valor agregado. Não existe milagre, tampouco prejuízo a quem o está vendendo. Observe, inicialmente, o valor do vinho oficial e compare se a venda está muito abaixo daquele valor. Não se arrisque! Esse é o ponto que merece observação especial do descaminho do vinho, basicamente, a diferença do preço.
O consumidor que compra vinho do descaminho paga, por exemplo, R$300,00 por um vinho cujo original tem preço de R$800,00, mas nós, bem informados, sabemos que ele estará tomando um vinho de qualidade duvidosa, que vale em torno de R$30,00. Se você encontrar uma garrafa de vinho importada com contra-rótulo original (sem a tradução ou mesmo sem a etiqueta autocolante em português), por exemplo, ou desconfiar da procedência, não se omita, faça a denúncia pelo canal correto através do “Fala Brasil” no site https://falabr.cgu.gov.br/Login/Identificacao.aspx. Seus dados pessoais estarão protegidos, nos termos da Lei 13.460/2017.
O que é feito de todo vinho apreendido? A Polícia Federal e as universidades parceiras criaram, em2020, o “projeto Etanóis” para transformar o vinho em álcool gel, álcool 70% e, ainda, o álcool 80% glicerinado, que são encaminhados para a rede pública de saúde de todo o Brasil. O projeto Etanóis foi implementado em várias universidades como a Universidade Federal do Pampa (Unipampa), Universidade Federal de Santa Maria (Ufsm) e a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs). É utilizado o processo da destilação fracionada que separa a água do etanol por meio da evaporação e condensação onde são retirados os compostos aromáticos dos vinhos. A Polícia Federal encaminha para as universidades tambores de 50 litros de vinhos e a Abrabe se encarrega da destruição e reciclagem das garrafas de vidro.
Eu como professora e divulgadora de vinhos condeno fervorosamente o descaminho. Sempre vejo o lado romântico, o lado correto e o prazer que o vinho proporciona quando harmonizados com os preparos gastronômicos e, outras vezes, quando degustado com amigos em momentos agradáveis. Claro que sabemos bem que vinho é um negócio atrativo, tentador e por isso acaba sendo traficado e/ou fraudado porque há sempre quem o compre. A prática criminosa do descaminho do vinho gera concorrência desleal, desemprego, sonegação de impostos. O criminoso é o único que ganha com essa ilicitude.
Não proponho aqui o clássico tin-tin como o faço ao final de cada artigo. Proponho aqui a você leitor, uma reflexão acerca das fraudes e do descaminho do vinho em terras brasileiras e sugiro atenção e cautela ao comprar seus vinhos.
Rachel Alves Massanori Nariyoshi
@rachelalves.professoravinhos