O território palestino na costa do Mar Mediterrâneo está sob bloqueio terrestre, marítimo e aéreo de Israel desde que o grupo Hamas passou a governá-lo. São quase dois milhões de pessoas que, na prática, já vivem sob uma espécie de quarentena muito antes da pandemia de Covid-19.
Essa particularidade fez Gaza viver uma situação paradoxal e um tanto irônica: por ser um “território-prisão”, com forte controle sobre quem entra e quem sai, por um algum tempo foi um dos lugares mais seguros do mundo. Pelo menos em relação ao novo coronavírus. Enquanto os vizinhos Israel e Egito assistiam a uma escalada no número de infectados, Gaza se manteve sem casos confirmados até o final de março. O vírus, porém, rompeu o bloqueio. Agora, uma das regiões mais pobres e densamente povoadas do mundo precisa resolver um impasse: como convencer as pessoas de que o confinamento é necessário, e o risco de morte é real, quando essa já é a norma local, o “normal”.
“Como dizer para as pessoas ficarem em quarentena quando elas passaram a maior parte de suas vidas sem qualidade de vida e liberdade individual? Em Gaza, nunca pudemos escolher como iremos viver. Nem morrer”, diz Issam Adawan, diretor de projetos do projeto “We Are Not Numbers” (“Nós não Somos Números”). Uma das iniciativas do grupo é reunir artigos e histórias, contadas pelos próprios palestinos, para mostrar o lado humano por trás dos números do morticínio em Gaza. Criado em um campo de refugiados em Rafa, no sul do território, Adawan conversou com a reportagem de TAB sobre a situação atual e as perspectivas, nem um pouco otimistas.
Densidade demográfica Os números oficiais variam de acordo com a fonte, mas até terça-feira (28) havia pelo menos 17 casos de Covid-19 confirmados em Gaza. A doença entrou no território por meio das pouquíssimas pessoas autorizadas a viajar. O número ainda é muito baixo e elas estão em quarentena. Só que Gaza tem quase dois milhões de habitantes em uma área de 365 km². Equivale a metade do município de Ubatuba, no litoral paulista, que tem em torno de 90 mil habitantes. Com a escassez de suprimentos e infraestrutura causada pelo bloqueio israelense, o vírus, se não for contido, tem potencial para fazer um estrago de proporções imprevisíveis.
“Rafa, com uma população estimada de 250 mil habitantes, não tem um hospital sequer!”, explica Adwan. “Na cidade de Gaza (cerca de 750 mil habitantes), o hospital Al-Shifa, o maior da região, tem apenas 500 leitos no total, e só 40 deles são de UTI. Isso, claro, se estiverem disponíveis para o uso.” Em um artigo recente para o “We Are Not Numbers”, Adwan elenca uma série de outros fatores para Gaza temer a Covid-19. Muitos deles, aliás, aplicáveis a algumas partes do Brasil. “Cerca de 97% da água de Gaza não é potável. Temos blecautes diários, hoje em torno de 16 A água poluída vai direto para nosso mar e lençóis freáticos, o que nos força a gastar nossos poucos recursos comprando água engarrafada. Ironicamente, de Israel”, escreve Adwan.
De acordo com um relatório da Unicef de 2017, e citado no artigo, 11% das residências da Faixa de Gaza não têm qualquer coisa parecida com um banheiro moderno, 30% delas não estão conectadas ao sistema de tratamento de esgoto e 75% não contam com um sistema de descarte de resíduos considerado seguro. Em 9% das residências sequer há pia no banheiro — cerca de 11% não possuem pia nem na cozinha.
Nesse momento, talvez o número que mais chame a atenção é o de respiradores: são apenas 87 para toda a Faixa de Gaza. Israel exige que o Hamas devolva dois corpos de soldados israelenses em troca dos aparelhos, em uma negociação que um colunista do Haaretz, principal jornal israelense, chamou de “desumana”. De acordo com o Haaretz, o número de respiradores na Faixa de Gaza seria ainda menor: 65. Em Israel, são 2.864 respiradores para 8,8 milhões de habitantes. Territórios palestinos têm suas próprias administrações de sistema de saúde. Pouco podem fazer, porém, sem a anuência ou ajuda direta de Israel. É de se esperar, então, que em um momento crítico como esse, a responsabilidade sobre Gaza recaia sobre os israelenses.
O exército de Israel havia prometido fazer 50 testes para Covid-19 por dia em residentes de Gaza. De acordo com o jornal The Jerusalem Post e outros veículos, porém, a iniciativa foi interrompida por encontrar resistência nos altos escalões do governo. Esse cenário mostra uma realidade bem diferente daquela que vem sendo divulgada: a de que israelenses e palestinos estariam juntos na luta contra a Covid-19, em uma cooperação inédita que supera décadas de desavenças. Se isso até está acontecendo no outro território palestino, a Cisjordânia, na Gaza do arqui-inimigo Hamas, a história é outra.
“Eu não imagino que esteja havendo cooperação entre israelenses e palestinos”, diz Adwan. “Se está, espero que seja baseada no reconhecimento dos nossos direitos, e não uma simples tentativa de limpar os crimes cometidos por Israel.” Distanciamento impossível Adwan explica que, diferentemente do que ocorre na Cisjordânia, é quase inviável implantar um sistema de quarentena na Faixa de Gaza. “O território é dividido em cinco áreas administrativas. Isolar apenas um setor da Faixa de Gaza é muito difícil por causa da falta de coordenação entre as diferentes facções políticas e pelo fato de os hospitais estarem distribuídos de forma desigual”.
Pacientes em estado grave ou urgente até conseguem transferência para hospitais da Cisjordânia, do Egito e mesmo de Israel. De acordo com Adwan, entretanto, trata-se de um privilégio negado a um enorme número de pessoas sob a alegação de que eles têm parentes envolvidos na resistência. “Não há estudos sobre o número potencial de infectados e mortos em Gaza. Mas, considerando tudo que expliquei, todo o território pode estar infectado em três dias”, diz Adwan. Para ele, Israel não está nem um pouco preocupado com eventuais acusações de negligência, caso isso ocorra. “Em 2008, Israel matou cerca de 700 pessoas em poucos minutos. Você viu algum temor por parte do governo? Nem um único caso de violação de direitos humanos e imposição de sanções a Israel foi aceito.”
Para Adwan, os moradores de Gaza já vivem em uma situação na qual podem ser vítimas de bombardeio ou “snipers” (atiradores) a qualquer momento, em qualquer lugar. “Mesmo se você tiver sorte e a escalada dos confrontos não te matar, você talvez morra por falta de água, comida, trabalho e até de uma casa”, diz ele. “Se você pensar em um possível número de mortos pela Covid-19, e comparar com o de causados pela ocupação israelense, a pandemia até significaria uma vida decente para nós em Gaza.”