Marcílio Souza
(texto e fotos)
Sair pelas ruas da cidade de São Paulo em um domingo de meados do mês de junho, ainda no início do processo de reabertura da cidade, em decorrência da pandemia do novo coronavírus, aguçou meus sentidos, provocando em mim um turbilhão de sensações e reflexões; que promoveram observações atentas, análises e conclusões. Senti e visualizei medo, tristeza, choro, melancolia, pena, indignação, solidão, abandono, insegurança, exposição às ofertas maléficas das ruas, mazelas sociais expostas e dúvidas, muitas dúvidas. Nos dias seguintes da permanência em São Paulo, continuei nas minhas andanças, buscas e contemplações.
O retorno a minha segunda casa, após pouco mais de três meses, colocou-me em contato com uma realidade nunca vista em São Paulo, maior centro financeiro, produtivo, cultural, consumidor e populacional do Brasil e um dos maiores do mundo. Tive que enfrentar medos e fraquezas internas para chegar e circular no epicentro brasileiro da COVID-19. Não foram poucos os que me desencorajaram nessa empreitada. Neste artigo trarei percepções, análises, dúvidas e informações sobre esse momento ímpar que vivemos.
Ao ver a Avenida Paulista e outras vias da região central de São Paulo com poucos carros e pessoas, tive, imediatamente, a sensação de um vazio, que algo estava faltando por ali. Observando com mais atenção e tempo, fui percebendo que o medo e a desconfiança estavam nos olhares e nos movimentos de quem se aventurava a circular nas vias públicas, bem como nos daqueles que se encontravam dentro dos estabelecimentos e moradias e observavam o exterior.
Caminhar apressado e atento para qualquer aproximação era uma constante, minha e de diversos outros. No entanto, as aglomerações ocorrem em pontos de concentração de moradores de rua e usuários de drogas, na parte central de São Paulo.
Fácil foi perceber que muitas pessoas estão vivendo nas ruas, bem mais do que em todos os outros momentos de minha experiência em São Paulo, que já dura mais de 20 anos. Barracas e ambientes improvisados de papelão, de compensados e de madeiras estão espalhados por inúmeras ruas e avenidas, com maior concentração nas intermediações da Paulista; do miolo do centro da cidade, como Praça da Sé, Vale do Anhangabaú e Cracolândia; além de parte do Brás; viaduto de acesso à Mooca e elevado Costa e Silva (Minhocão). Mesmo em regiões nobres da cidade, como Jardins, Higienópolis e Vila Mariana, por exemplo, é possível notar um grande número de pessoas dormindo nas ruas, embaixo de marquises e em varandas de imóveis abandonados ou para aluguel.
Pessoas de variadas idades, desde crianças a idosos, famílias inteiras, estão nas ruas. Contei em uma passagem de pedestres quase em frente ao edifício da Fiesp, na Paulista, quatro crianças e dois adultos dormindo amontoados em uma mesma pequena barraca. Por segurança e companhia, as pessoas se unem em pequenos grupos em pontos com menos circulação e nas proximidades de praças, parques, viadutos e becos.
Não foram poucos os idosos vistos perambulando ou dormindo em bancos de ruas/praças e galerias comerciais, em completo abandono. Os cenários da Praça da Sé; da Cracolândia, com as pessoas se drogando em grupos; do largo de São Francisco e do viaduto da Mooca, com inúmeras pessoas em filas para pegar doações de comida, foram os mais impactantes. Em um túnel perto do Vale do Anhangabaú, vi, à luz do dia, um senhor fazendo suas necessidades fisiológicas, de cócoras, sem qualquer roupa, no meio fio, ao lado dos carros passando.
Outro aspecto notável consistiu no misto de estabelecimentos comerciais já abertos, em dias e horários permitidos nos decretos do governo local, e de tantos outros da mesma natureza ainda fechados, como restaurantes, comércios e prestadores de serviços; alguns já com placas de “passa-se o ponto” ou de “venda/aluguel”. Algo que, possivelmente, indica a quantidade de negócios que não conseguirão reabrir. Muitos outros bares, casas noturnas e ambientes de diversão fechados ou, ainda, com indicativos de fim das operações, são facilmente vistos. A retomada econômica e das atividades comerciais por São Paulo dá aparência de que não será nada fácil.
Assustador também é a abundância de lixo e entulho espalhados nas ruas da cidade, especialmente na parte mais central. Algo que só elevam as sensações de abandono e de terra arrasada, promovendo mais medo nas pessoas ao saírem nas ruas. Vi cenários dignos de filmes de pós-guerra ou que retratam centros urbanos abandonados e locais dominados por extrema violência.
De fato, as ruas e calçadas foram tomadas por entregadores de mercadorias, alimentos e refeições. Eles atuam a pé, em bicicletas, motos, carros e até de skates. Alguns transitam em altas velocidades, especialmente os motoqueiros. São facilmente identificados por meio das bagagens que levam nas costas e a constante pressa.
Na última noite em São Paulo, quando estava produzindo as derradeiras imagens na Avenida Paulista, presenciei a cena mais triste e chocante. Um senhor de uns 50 anos de idade, logo a minha frente, caminhando no sentido Paraíso/Consolação, do lado e nas proximidades do Masp, levando algumas sacolas plásticas cheias, passou a buscar em cestos de lixo, um após o outro, restos de comida. Acompanhei a saga desse senhor à procura de comida e, por repetidas vezes, não menos do que dez, estive diante dessa condição extrema, comovente e lamentável. Uma condição deplorável e inaceitável para qualquer ser humano.
Em uma perspectiva econômica ampla, dados da PNAD COVID-19, realizado pelo IBGE com o apoio do Ministério da Saúde no mês de maio/2020, para visualizar impactos da pandemia no mercado de trabalho, apontam para o drama vivido por muitos brasileiros em meio à crise, em decorrência de desemprego ou da falta de possibilidade de busca de atuação, algo que deve ser agravado nos primeiros meses de retomada das atividades econômicas.
Na última semana de maio cerca de 17,7 milhões de pessoas não procuraram emprego no Brasil, em função da pandemia ou por falta de oportunidades. Adicionando a esse número os 10,9 milhões que estavam desempregadas e em busca de uma ocupação, temos um total de 28,6 milhões de pessoas que queriam um emprego, mas encontraram dificuldades na inserção no mercado. O IBGE estima que 84,4 milhões de pessoas estavam ocupadas no país, de um montante de 169,9 milhões com idade para trabalhar. A informalidade, apesar de ter caído durante o mês de maio, atinge em torno de 30 milhões de pessoas.
Quedas na produção industrial, no comércio e nos serviços durante a pandemia, que vão promover mais desemprego e escassez de recursos em muitos lares, só irão agravar a situação econômica do Brasil nos próximos meses. Os pedidos de recuperação judicial e falência, especialmente de pequenas empresas, crescem no país nesses meses de pandemia, segundo dados da Serasa, e devem disparar nos primeiros meses após a crise.
No estado de São Paulo, locomotiva econômica do país, as perdas e danos com a pandemia são diversos. Estimativa recente da Secretaria de Desenvolvimento Econômico do estado aponta para uma queda de 5,5% do PIB, com perda de arrecadação em torno de R$ 18 bilhões. São Paulo, assim como os outros estados, depende hoje de ajuda e de repasses da União para enfrentar os prejuízos do período de pandemia. Um total de R$ 107,1 bilhões está sendo repassado aos entes federativos estaduais, de acordo com levantamento do Instituto Fiscal Independente – IFI. Apenas ao estado de São Paulo encontram-se disponíveis cerca de R$ 25,9 bilhões, segundo o referido Instituto.
Levantamento do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – Ipea indica uma queda de 72% na abertura de empresas de 1o de abril a 5 de maio de 2020 na cidade de São Paulo, em relação ao mesmo período do ano passado. Ao município de São Paulo está previsto em Lei R$ 1,37 bilhão vindo da União para o enfrentamento da COVID-19, fora os repasses do estado.
Diante do cenário exposto, com cenas de terra arrasada, muitas perdas e danos, bem como devido ao isolamento estabelecido, algumas perguntas são necessárias pensando na cidade de São Paulo, mas que podem ser direcionadas a outras realidades. A maioria das possíveis respostas deveria estar disponível nas plataformas de comunicação do ente público, o que não ocorre. Os dados disponíveis são básicos e relativos à adesão ao isolamento, à ocupação de leitos disponíveis e aos números de casos e mortes, especialmente, além do jargão “FIQUE EM CASA”.
A primeira pergunta que surge diz respeito à infecção de pessoas que continuaram trabalhando nesse período de isolamento social. Os trabalhadores em áreas e atividades essenciais, como supermercados, verdurões, lojas de materiais de construção, indústrias, porteiros, seguranças, entregadores, caminhoneiros, motoristas, taxistas, construção civil, atendentes de postos de combustíveis, garis, dentre outros, foram mais infectados do que os que ficaram em casa? Morreram mais pessoas que atuam nessas áreas do que em outras que pararam as atividades durante a pandemia?
Os entregadores estão desempenhando importante papel para evitar a circulação de pessoas pela cidade. Eles foram mais infectados ou morreram em maior número por isso? Infectaram pessoas nesse ir e vir constante, especialmente nos contatos diretos nos momentos iniciais e finais de entrega? Esse e outros dados das pessoas que estão atuando neste período da pandemia tornam-se imprescindíveis para melhor se compreender a situação de emergência na saúde pública.
Sabemos que a área da saúde é um caso à parte, devido à proximidade com infectados e portadores de outras doenças contagiosas. Mesmo assim, os dados também são importantes para traçar comparações e realizar análises.
Considerando o aumento de pessoas vivendo nas ruas de São Paulo nesse período da pandemia, famílias inteiras, idosos e crianças, além dos adultos de ambos os sexos, verifica-se a necessidade de acompanhamento dessa realidade. Esse público tem sido testado para a COVID-19? Foram mais infectados do que outros segmentos sociais, por estarem expostos aos contatos de rua, por vezes sem o uso de medidas preventivas adequadas? Morreram muitos moradores de rua em decorrência de sintomas graves da doença? Essas e outras perguntas precisam ser respondidas pelo poder público.
As dúvidas são muitas. Por que a cidade e o estado de São Paulo, bem como outros Brasil afora, preferiram investir em novos hospitais, muitos improvisados, em detrimento de investimentos em equipes de saúde para o atendimento de pessoas em casa? Para que as pessoas não saiam de casa para os hospitais, infectando e sendo infectadas. Qual o motivo da falta de estímulos para as medidas de prevenção de baixo custo no início da pandemia, como distanciamento social e o uso de máscaras? Sabemos que o isolamento social não promoveu um baixo número de casos e mortes, mas causou elevados prejuízos sociais, econômicos e na saúde pública, com a falta de combate e enfrentamento de outras doenças e os efeitos psíquicos colaterais ao próprio isolamento. Por que ainda insistem no isolamento?
Fica ainda a dúvida da interferência das disputas políticas no enfrentamento da pandemia. Por que estados e municípios com governadores e prefeitos alinhados politicamente com o governo federal apresentaram números menores de casos e de morte? Mera coincidência? Os estados de São Paulo e do Rio de Janeiro apresentam, respectivamente, os maiores números de casos e de mortes apenas em decorrência das maiores populações do Brasil? Decisões no enfrentamento, como falta de protocolos com os medicamentos baratos disponíveis para a fase inicial dos sintomas interferiu no número de mortes? O uso dos hospitais e dos respiradores nos casos graves justificam os elevados gastos? Houve ou não um grande acordo entre governadores e prefeitos para derrubar o Governo Federal? Quem mais apoiou esse possível acordo?
Outro dado estatístico importante a ser levantado está relacionado à atuação de jornalistas e profissionais de imprensa durante a pandemia. Por não terem parado e sido constantemente expostos aos diversos cotidianos de rua, esses profissionais foram mais infectados? Ocorreram muitas mortes?
Tanto em função do elevado número de casos e de mortes, como devido a quantidade de pessoas que vivem na cidade de São Paulo, as estatísticas tornam-se extremamente necessárias para se melhor entender a pandemia. Em Nova Iorque, por exemplo, os números demonstraram que 66% das pessoas que precisaram de atendimento médico em decorrência da infecção pelo novo coronavírus estavam em casa, sem contatos com as ruas. Aos dados do estado mantêm-se a mesma importância dos dados estatísticos.
Vale mencionar, ainda, que a maioria dos mortos pela ou com a COVID-19 em São Paulo é composta por pessoas das camadas menos favorecidas da sociedade, com rendas mensais até três salários mínimos. Por quê?
Em suma, diante dessas e outras, a cidade de São Paulo é ambiente de medos nesse momento. Medo do invisível, do vírus que pode está em qualquer lugar, nas ruas, nos meios de transportes públicos, nos estabelecimentos e também nos lares. As pessoas acabam sendo vistas como potenciais ameaças, gerando desconfianças mútuas. Os medos já existentes devido a problemas sociais como violência, trânsito inseguro e desemprego, ganhou um forte aliado: o medo de contrair o novo coronavírus e de evoluir para complicações de saúde mais graves e, até, morrer.
Da forma que a pandemia foi tratada pelo poder público, com total apoio dos grandes veículos de comunicação, alarmando e aterrorizando a população, mostrando covas, enterros e caixões, promoveu um encontro entre os temores do vírus com o maior desafio e incógnita da existência humana, o medo da morte. O ser humano ocidental capitalista, que normalmente tenta esquecer a sua finitude e afasta-se de tudo relacionado à morte, é lançado de frente, cara a cara, com um potencial causador de sofrimento e morte.
Apesar de serem certos os problemas psíquicos e sociais, além dos econômicos, em decorrência dessa forma de abordagem da pandemia, não se pode ainda avaliar a gravidade deles. O futuro é incerto e nebuloso, não muito diferente das ações desencontradas, descoordenadas e dos erros no enfrentamento da pandemia. Ver São Paulo nesse estado de mundo arrasado é triste e desolador. Por dias melhores.
Em essência, a minha visita a São Paulo durante a pandemia tanto foi importante para eu confrontar, enfrentar e, até, eliminar os medos colocados e difundidos, como para experimentar e adquirir a capacidade de sobrevivência em momentos desafiadores. Fica um crescimento pessoal e profissional, apesar das variadas imagens fortes e aterrorizantes. Nunca pensei vivenciar ‘Sampa’ nesses cenários de guerra.
São Paulo sob o domínio da COVID-19: Sociedade e economia em tempos de crises: sanitária, política e social
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Marcílio Souza é sociólogo e jornalista, mestre e doutor em comunicação.