IGOR GIELOW
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Enquanto despachava uma frota de submarinos para desafiar um exercício militar ocidental, o governo russo afirmou nesta sexta (19) que está “pronto para o pior” ao ser questionado sobre o risco de uma nova Guerra Fria com os Estados Unidos.
É claro que esperamos o melhor, mas estamos sempre prontos para o pior. No que diz respeito à Rússia, o presidente Vladimir Putin disse claramente que quer continuar os laços [com os americanos]”, afirmou o porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskov.
Na quarta (17), o presidente americano, Joe Biden, elevou o tom contra seu par russo de forma inaudita mesmo durante a Guerra Fria, embate geopolítico global entre Washington e Moscou na esteira da divisão à força pela União Soviética da Europa entre blocos capitalista e comunista após a Segunda Guerra Mundial.
Questionado se Putin era um assassino em entrevista na TV, no contexto do envenenamento do opositor Alexei Navalni, Biden disse que sim. E ainda prometeu revidar por supostas interferências cibernéticas no pleito americano de 2020.
Navalni sobreviveu à tentativa de assassinato, que o Kremlin nega, mas foi preso logo ao voltar à Rússia. Teve uma sentença de prisão reativada por violação de condicional e ficará mais de dois anos numa colônia penal. “É claro que não podemos descartar os comentários de Biden”, ressaltou Peskov. Na quinta, o democrata reafirmou sua posição.
Uma nova Guerra Fria com os russos teria caráter estritamente militar e localizado, dado que o poder de projeção de Moscou é limitado. Durante o embate que acabou com o fim do império comunista em 1991, os dois países se enfrentavam mundo afora, em geral por procuração. Economicamente, a Rússia tem pouca musculatura. Não por acaso, a Guerra Fria 2.0 é vivida hoje por Washington e a China, que não é uma potência militar ainda comparável aos EUA, mas apresenta um desafio econômico sustentável e crescente assertividade global.
O que não elimina o Kremlin do tabuleiro, não menos porque Putin tem um arsenal nuclear equiparável ao de Biden à mão, e em pleno rejuvenescimento: o mais recente relatório do Ministério da Defesa aponta que mais de 80% dos mísseis e ogivas russos são modernos ou modernizados. E Moscou tem uma capacidade de projeção limitada de poder à sua periferia que é respeitável. Um sinal disso foi dado nesta mesma sexta, em meio à troca de farpas entre o Kremlin e a Casa Branca. A Frota do Mar Negro, centrada em Sebastopol (Crimeia), despachou seus seis submarinos de ataque ao mesmo tempo, algo inédito.
O motivo? Um megaexercício militar da Otan (aliança militar do Ocidente), liderado pela Romênia, naquelas águas. São 18 navios de guerra, 10 aviões e 2.400 militares de cinco países do clube. O mar Negro tornou-se uma frente de tensão exacerbada pela tomada da região étnica russa ucraniana da Crimeia por Putin, em 2014, como resposta à derrubada do governo pró-Moscou em Kiev.
Além disso, sua margem sul é dominada pela Turquia, membro da Otan que tem rivalizado com a Rússia em conflitos regionais recentemente –da Síria e Líbia ao apoio ao Azerbaijão contra a Armênia, no ano passado. A atividade militar dos dois lados cresceu, e não passa semana sem interceptação de aviões de reconhecimento ou exercícios provocadores.
“Isso [o envio de todos os submarinos] não acontece nem com a Rússia nem com outros países. É sem precedentes”, disse à agência Interfax o capitão Anatoli Varochnik, comandante da força submarina em Sebastopol. O fato de navios de superfície ficarem na base indica que os russos irão acompanhar os passos da frota da Otan, que tem paradas previstas na Geórgia e na Turquia. O exercício ocidental é de interdição de área.
Obviamente intercorrências não estão nos planos de nenhum dos lados, mas o fato de as forças rivais estarem na água sempre dá margem a acidentes. No ano passado, um destróier russo quase abalroou outro, americano, para impedir seu trânsito em águas que Moscou considera suas no Pacífico.
Desde o tempo do império dos Románov (1613-1917) e durante o reinado soviético (1922-1991), o mar Negro é visto por Moscou como parte de sua esfera estratégica. Ele garante o acesso russo ao Mediterrâneo, por meio dos estreitos turcos de Bósforo e Dardanelos, sendo vital para exportações de hidrocarbonetos e para a coordenação das atividades militares de Moscou na Síria.
Assim como o mar Báltico, o Ártico e o Extremo Oriente russo, o mar Negro é hoje um ponto em que forças ocidentais buscam contestar essa noção de domínio sempre que possível, como no recente pouso de um bombardeiro estratégico no norte da Noruega.