Hoje, a interrupção voluntária da gravidez só é permitida no país em casos de risco de morte para a mãe ou de estupros.
Notícias ao Minuto Brasil
Alô?, atende uma socorrista. Depois de alguns segundos de silêncio, as mulheres se justificam: “o preservativo estourou”, “a pílula não funcionou”, “o dispositivo falhou”: “Preciso fazer um aborto”.
Assim se iniciam a maioria das conversas entre mulheres grávidas e as ativistas do grupo Socorristas em Rede (nome original: Socorristas en red, feministas que abortamos). São feministas que auxiliam mulheres que querem interromper uma gravidez na Argentina, cujo Senado vota nesta quarta-feira (8) a descriminalização do procedimento até a 14ª semana.
Hoje, a interrupção voluntária da gravidez só é permitida no país em casos de risco de morte para a mãe ou de estupros -o Brasil permite nas mesmas situações e também em casos de feto anencéfalo, e agora o Supremo Tribunal Federal debate ampliar a legalidade do procedimento.
A rede argentina funciona no país desde 2012 e já auxiliou mais de 8.000 mulheres a realizarem um aborto seguro. A ação das socorristas começa por meio das ligações telefônicas para números que são divulgados frequentemente nas cidades onde atua a rede, sob o título “aborto: mais informações, menos riscos”.
As mulheres que telefonam pedindo orientação são encaminhadas para reuniões presenciais, onde encontram outras grávidas com a intenção de abortar, mulheres que já fizeram abortos e as próprias ativistas. Nos encontros, recebem informações básicas sobre o uso seguro da medicação abortiva, o remédio misoprostol, também conhecido no Brasil pelo nome comercial de Cytotec. O procedimento -a ingestão do medicamento- ocorre nas próprias casas das mulheres, que são acompanhadas via telefone pelas socorristas.
Segundo dados da OMS (Organização Mundial da Saúde), a medicação é considerada segura.Ainda assim, em 2016, 12% das mulheres assistidas precisaram de algum cuidado médico depois de 72 horas de ingestão do remédio. Nestes casos, a paciente é encaminhada a profissionais de saúde ‘amigáveis’, que, além de prestar o cuidado médico, escutam atentamente seus casos. A aproximação entre a rede e estes setores do sistema de saúde é uma política exitosa do grupo. Em 2016, cerca de 17% das mulheres que procuraram a Rede foram encaminhadas por profissionais de saúde.
As demais chegaram após ver os números dos telefones das socorristas nas ruas, tomar conhecimento de sua existência em palestras ou na internet. “Nós, as socorristas, não realizamos abortos. Nós damos informações sobre o uso seguro de medicação para abortar”, diz Julia Burton, ativista responsável pela compilação de dados da rede.”
Essa informação é pública, está em manuais da Organização Mundial de Saúde, das Federações de Obstetrícia e Ginecologia. Ou seja, é informação certificada por órgãos de saúde certificados. O que nós fazemos é colocar esta informação à disposição, e a informação é um direito humano.
“Para além das informações, o acompanhamento das mulheres que realizam o aborto é parte fundamental do ativismo. Elas são acompanhadas antes, durante e depois do procedimento.”O socorrismo se dá em quatro momentos”, explica Nadia Mamani, socorrista que realiza os acompanhamentos. “O primeiro é a ligação telefônica, em que conversamos com essa mulher, que nos conta de sua decisão. Em geral é uma ligação com muita angústia. Depois nos reunimos com grupos em lugares públicos, conversamos sobre seus medos e temores, e damos um folheto com explicações passo a passo sobre o.” uso seguro da medicação.
Quando elas adquirem a medicação, diz a ativista, a rede acompanha por telefone o processo do aborto.”[Fazemos isso] para que, ainda que estejam na companhia de algum ente querido, saibam que nós estamos ali para qualquer dúvida ou pergunta. Isso as tranquiliza muito. E entre sete e dez dias depois do processo, realizamos um controle pós-aborto para saber se está tudo bem.
“Esse acompanhamento, embora não seja propriamente psicológico, é importante, segundo elas, para dar também um suporte emocional. Desde 2014 o grupo reúne dados para produzir informações quantitativas sobre os acompanhamentos e pressionar politicamente o debate pela legalização do aborto.
Os dados compilados pelas socorristas contestam algumas das ideias difundidas a respeito do tema. O levantamento mostra, por exemplo, que a grande maioria das mulheres que abortam têm mais de 19 anos, derrubando a ideia de que apenas adolescentes abortam. Indica ainda que mais da metade dos abortos é realizada por mulheres que já foram mães, e que, portanto, são conscientes dos significados da maternidade.
As práticas demonstram ainda que um aborto realizado na clandestinidade não significa necessariamente que seja inseguro, já que, atualmente, é exitoso na grande maioria dos casos.
“Em uma reunião, veio uma mulher de 35 anos que estava angustiada e perguntou à sua filha de 15 anos como podia fazer um aborto seguro. Foi a filha que disse ‘ligue para as socorristas, que elas vão te acompanhar’, e ela veio à reunião com a filha”, lembra Nadia.”Foi muito impactante ver uma menina tão jovem acompanhando sua mãe”, conta. “Ela fez o aborto em sua casa, acompanhada por sua filha que levou biscoitos e doces para que ela se sentisse melhor.”
Apesar de ser ilegal, milhares de mulheres argentinas realizam abortos clandestinos todos os anos.O Ministro da Saúde argentino, Adolfo Rubinstein, afirmou em março de 2018 que ocorrem anualmente 50 mil internações decorrentes de complicações de abortos clandestinos no país.
“Creio que é um problema de saúde pública. É a primeira causa de morte materna: em 2016 morreram 43 mulheres e qualquer morte materna é uma fatalidade”, afirmou na ocasião.
Embora permitido em casos de risco de morte da mãe ou estupro, as socorristas dizem que a lei nem sempre é cumprida.É o caso de Joana, mulher de 36 anos estuprada pelo ex-marido no ano passado, que teve o procedimento negado em uma clínica particular.
Ela procurou o serviço social de sua cidade que também negou o atendimento. Conseguiu a medicação depois de ser maltratada em diversas farmácias, mas recebeu as instruções equivocadas e o aborto foi malsucedido.
As socorristas encontraram Joana traumatizada pela situação, e levaram-na a uma clínica amigável, onde ela foi submetida a uma cirurgia, com o apoio psicológico permanente das ativistas.
“Quando chegamos, ela estava em um estado de ansiedade aguda, além do trauma que o estupro havia provocado. Sua irmã nos contou que ela não comia havia dias e que estava muito deprimida, além de muito nervosa”, contam Micaela Ruiz e Camila di Leo , socorristas que entraram para a rede recentemente.
“Dissemos que ela tinha direito ao aborto, porque estava contemplado pela lei, e que ela não tinha que confessar nada, ou contar como foi o estupro. Apenas tinha que dizer que queria fazer o aborto”, afirmam. “Asseguramos que estaríamos com ela durante todo o processo. Ela disse que isso lhe deu confiança e que se sentiu acolhida.”