Rodrigo Craveiro
Durante os quatro anos sob o comando do republicano Donald Trump, os Estados Unidos flertaram com uma política externa marcada pelo isolacionismo. Ontem, em visita ao Departamento de Estado, o presidente democrata, Joe Biden, sepultou o tema “America First” (“A América em Primeiro Lugar”), transformado quase que em mantra no governo do antecessor. “Quero enviar uma mensagem clara ao mundo: os Estados Unidos estão de volta. A diplomacia está de volta. Vocês estão no centro de tudo o que planejo fazer”, declarou Biden na sede da chancelaria norte-americana. “Nós vamos reconstruir nossas alianças, vamos nos reengajar com o mundo e enfrentar os enormes desafios da pandemia e do aquecimento global, e defendendo novamente a democracia e os direitos humanos em todo o planeta”, acrescentou. Os EUA deram um passo simbólico para a retomada das alianças: Biden reverteu uma decisão de Trump e congelou a retirada de 12 mil soldados norte-americanos baseados na Alemanha.
A Casa Branca também anunciou o fim do apoio à coalizão liderada pela Arábia Saudita na guerra civil que consome o Iêmen desde 2015, a qual custou 110 mil vidas. Além de suspender a participação no combate aos separatistas huthis, Biden também suspendeu a venda de armas para Riad. “Esta guerra deve acabar. Para ressaltar o nosso compromisso, estamos terminando com todo o apoio americano às operações ofensivas na guerra no Iêmen, incluindo a venda de armas”, afirmou Biden. Os rebeldes huthis saudaram a decisão como “um passo rumo ao fim do conflito”. O democrata deverá analisar a inclusão desses rebeldes na lista de “organizações terroristas”. Em outra guinada, Biden avisou que não se submeterá mais à Rússia e enfrentará o autoritarismo de Moscou e da China. “Eu deixei claro ao presidente (Vladimir) Putin, de uma maneira muito diferente de meu antecessor, que a época em que os EUA se submetiam aos atos agressivos da Rússia (…) acabou”, disse.
Asher Orkabi, pesquisador do Instituto Transregional da Universidade de Princeton e autor de Yemen: what everyone neeeds to know (“Iêmen: o que todo mundo precisa saber”), afirmou ao Correio que o anúncio de Biden sobre o Iêmen é “inoportuno” e “ineficaz”. Segundo ele, embora os EUA sejam o principal fornecedor de armas da Arábia Saudita, não são o único. “A curto prazo, a retirada do apoio de Washington à guerra saudita no Iêmen terá pouco efeito. Em longo prazo, os EUA abrirão mão de um papel influente no Golfo e serão substituídos por países com menos padrões morais. Simbolicamente, Biden mostrou a toda a coalizão saudita que apoia o domínio regional iraniano.”
Orkabi lembra que, desde 2015, os americanos trabalham com a Arábia Saudita e com os Emirados Árabes Unidos para golpearem a Al-Qaeda na Península Arábica (AQAP) e outros grupos extremistas no sul da Arábia. “A condução da campanha militar saudita tem sido ineficaz, em parte por causa do terreno intransponível, no norte do Iêmen; em parte, porque o governo iemenita no exílio, liderado por Mansur Hadi, limitou a legitimidade em seu próprio país.”
Morador de um vilarejo na província iemenita de Hajjah (norte), Abd Al-Razzaq Al-Neami avaliou o fim do apoio de Biden à guerra como “um bom começo”. “Se os EUA querem recuperar a dignidade, devem parar de apoiar regimes criminosos no Oriente Médio e levantar o bloqueio aéreo, terrestre e marítimo ao Iêmen. Esperamos que a diplomacia de Biden seja positiva em relação ao Iêmen e incorpore o fim da agressão ao meu país”, disse à reportagem.
Dissuasão – Para Nick Reynolds, especialista em Guerra Terrestre do Instituto Royal United Services para Estudos de Defesa e Segurança (Rusi, em Londres), as tropas americanas, na Alemanha, são parte crucial da dissuasão convencional da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). “A Rússia tem se comportado mais agressivamente na Europa nos últimos anos, e tem sido vista como um adversário pela Otan. Um grande meio para a Rússia promover suas metas políticas é a ameaça da força militar. Uma presença militar da Otan robusta e capaz na Europa é essencial para coibir uma agressão. Como a maioria dos membros da Otan subinvestiram em suas capacidades militares, os EUA ainda fornecem a espinha dorsal das forças da Otan na Europa, e a presença das tropas é fundamental para uma dissuasão crível da aliança ocidental”, explicou ao Correio.