Robson Coelho Cardoch Valdez[1]
5 de junho de 2024
O triunfo dos Estados Unidos sobre o Bloco Soviético, no final dos anos 1980 e início dos anos 1990, alimentou no Ocidente a expectativa de que os países do então mundo subdesenvolvido (ou Terceiro Mundo) pudessem aderir de forma mais consistente ao livre mercado e demais valores caros para a nação hegemônica do sistema internacional, que guiava as diversas dimensões do processo de globalização. Contudo, esse bloco de países, com uma complexa pauta de interesses nacionais, seguiu administrando essa agenda de valores (livre mercado, democracia, direitos humanos etc.) de forma autônoma e que, em muitos casos, conflita com a visão de mundo daqueles países ocidentais que estão geográfica e ideologicamente localizados no hemisfério Norte. Mas, ao defenderem pragmaticamente seus interesses em conjunto com a agenda de interesses econômicos e geopolíticos dos países do núcleo do capitalismo internacional, o Sul Global acaba se beneficiando do apoio ou complacência desses mesmos países.
Indiscutivelmente, um dos grandes pontos da agenda internacional que une o Sul Global é sua aversão ao legado imperialista extremamente nocivo que vincula suas elites econômicas ao núcleo do capitalismo global, que condiciona suas economias de forma dependente, limitada e subalterna. Frente a isso, o Sul Global busca vocalizar anseios africanos, asiáticos e latino-americanos, de forma minimamente articulada em fóruns multilaterais, por meio de uma agenda comum capaz de mitigar tal dependência, especialmente frente aos novos desafios impostos pelas mudanças climáticas que os afeta de forma mais severa, bem como em relação às recentes disputas geopolíticas envolvendo os Estados Unidos (e seus aliados), China e Rússia.
Como é sabido, os três pilares da presidência brasileira do G20 (1. a luta contra a pobreza e a fome; 2. o enfrentamento das mudanças climáticas; e 3. a reforma da governança global) são temas que possibilitam a convergência de interesses dos países do Sul Global. Ao passo que os países desenvolvidos, em especial os Estados Unidos, têm tido dificuldades para construir consensos com o Sul Global nessas agendas, o que acaba minando a capacidade deste ator hegemônico de exercer o poder relativo por meio da liderança ou mediador do consenso entre Norte e Sul.
Nesse sentido, as escolhas de Indonésia, Índia e Brasil para presidir os mais recentes encontros do grupo, bem como a próxima presidência da África do Sul em 2025, podem apontar para uma estratégia dos países ocidentais de se “aproximarem” do Sul Global em um contexto geopoliticamente desafiador que demanda todo tipo de apoio. Contudo, em que pese a coesão do Sul Global em torno de uma agenda comum que desafia a capacidade de liderança dos Estados Unidos e de seus aliados, o poder estrutural da potência hegemônica segue presente na construção e determinação das estruturas da economia política global, na qual outros Estados e suas instituições operam.
Assim, apesar do esforço ocidental de manter importantes canais de articulação com o Sul Global, outras questões geopolíticas têm influenciado as relações internacionais, como a crise russo-ucraniana. O conflito Israel-Hamas e as eleições presidenciais nos Estados Unidos parecem aumentar o fosso que distancia, ainda mais, países desenvolvidos e os países em desenvolvimento. É neste contexto que a presidência brasileira do G20 busca projetar a agenda dos países em desenvolvimento para o centro das discussões internacionais.
G20: onde o Norte e o Sul Global se encontram
A presença do G7 (Estados Unidos, Canadá, Reino Unido, França, Alemanha, Itália e Japão) está na gênese do G20. Ainda que tenha surgido em 1999, na esteira de sucessivas crises que atingiram economias emergentes, foi no pós-crise do subprime nos Estados Unidos (2008) que o G20 se consolidou como fórum de líderes das vinte maiores economias do planeta – dezenove países e o bloco europeu. Desde então, o G20 tornou-se importante espaço de diálogo para países desenvolvidos e emergentes debaterem agendas de interesse comum no âmbito da governança financeira global como forma de fomentar o crescimento econômico global. Gradativamente este fórum incorporou outros temas que estão relacionados com a promoção do desenvolvimento sustentável, como energia, mudanças climáticas e, recentemente, a pandemia de Covid-19. A partir desse guarda-chuva (crescimento econômico e desenvolvimento sustentável), os membros do G20 buscam estabelecer estratégias para promover seus interesses nacionais em ações coordenadas com os demais membros do bloco. Nesse sentido, o interesse nacional, muitas vezes, se sobrepõe ao antagonismo Norte-Sul.
A Aliança Global dos Biocombustíveis, que aglutinou Estados Unidos, Índia e Brasil (maiores produtores e consumidores de biocombustíveis), foi criada em 2023 durante a presidência indiana do G20 com o intuito de criar regras internacionais paraa produção sustentável de biocombustíveis. Faz-se necessário ressaltar que, assim como em outros fóruns globais, o G20 é pautado pelo pragmatismo dos seus atores diante de agendas que muitas vezes, em algum grau ou dimensão, estão sobrepostas. Tomemos como exemplo os votos de abstenção de Brasil e Índia, em novembro de 2022, durante a votação da Resolução ES-11/5 da Assembleia Geral das Nações Unidas que apelava à Rússia para pagar reparações de guerra à Ucrânia por meio da criação de um mecanismo internacional de reparações. Diferentemente de Brasil, Índia, Indonésia, África do Sul e Arábia Saudita, a maioria dos membros do G7 votou em bloco a favor dessa resolução, evidenciando divergência de posicionamento, com repercussões diretas sobre o aumento dos preços de energia e alimentos, e que afetam de forma mais grave os países do Sul Global, principalmente os africanos.
Dessa forma, a presença da União Africana no G20 reforça a importância da agenda do desenvolvimento, das mudanças climáticas e da reforma da governança global, temas centrais no âmbito da presidência brasileira do G20. Apesar de contribuir menos para o aumento da temperatura do planeta, o continente africano é umas das regiões que mais sofrem com as mudanças climáticas. Da mesma forma, ao se levar em consideração a agenda da transição energética e do desenvolvimento sustentável, é importante ressaltar a relevância do continente africano como fonte de recursos energéticos e minerais. Por fim, além de enfrentar desafios no combate à fome e à pobreza, o continente africano enfrenta enormes dificuldades no equacionamento de questões importantes no âmbito da governança global. Isso posto, os impactos negativos do alto nível de endividamento dos países africanos sobre suas políticas de desenvolvimento, bem como a persistente relação de dependência da região com as antigas metrópoles europeias, ressaltam a urgente necessidade de repensar a representatividade das instâncias de governança global.
Dentro desta perspectiva de se promover agendas de interesses dos países do Sul Global, a presidência brasileira do G20 lançou a Aliança Global contra a Fome e a Pobreza. Esta iniciativa, que ocorrerá em julho do corrente ano, tem o potencial de engajar os membros do G20, bem como a esmagadora maioria de países que enfrentam o flagelo da fome e da pobreza em todos os continentes. A iniciativa visa fomentar o intercâmbio de experiências nacionais no combate à fome e à pobreza; a realocação de recursos que seriam pagos a credores internacionais; e o perdão parcial de dívidas por parte de países. Mais uma vez, países do Sul Global, de forma articulada, buscam caminhos para equacionar problemas crônicos (fome e pobreza) no âmbito do sistema internacional estruturalmente concentrador de riqueza e de poder.
G20 e Geopolítica
Fazer avançar a Aliança Global contra a Fome e a Pobreza, dar continuidade aos trabalhos da Aliança Global dos Combustíveis e consolidar a presença do bloco de países africanos no G20 são apenas alguns dos bons resultados que poderão ser contabilizados ao final da presidência brasileira do G20. Sabe-se, porém, que os pilares Fome e Desigualdade, Mudanças Climáticas e Governança Global são terrenos amplos que comportam uma diversidade de negociações que não cabem em um recorte temporal de uma única cúpula. Nesse sentido, um grande desafio que se impõe aos trabalhos que ocorrem no Brasil diz respeito ao engajamento dos países centrais nessas discussões que podem ser preteridas por conta de desdobramentos geopolíticos.
A referida perda de poder relativo dos Estados Unidos pode até ser contemporizada ao se argumentar que sua capacidade de coagir e influenciar outros países passa por um processo decisório pautado, dentre outras coisas, pelos custos de oportunidade (domésticos e internacionais) e pelas prioridades de sua política externa frente a uma diversidade de agendas. Contudo, os desafios impostos pela China e pela Rússia às suas fontes de poder estrutural são reais.
Não por acaso, em janeiro de 2021, o então indicado para o Departamento de Estado do governo Biden, Antony Blinken, já se posicionava de forma dura sobre a China durante sua sabatina no Comitê de Relações Exteriores do Senado. Na ocasião, declarou que a China é um país a ser vencido. Da mesma forma, o Secretário de Defesa dos Estados Unidos, Lloyd Austin, já se referia à China como um ator hegemônico regional que busca se tornar a “potência proeminente no mundo em um futuro não muito distante”. Percebe-se que o crescimento do poder estrutural chinês exerce uma espécie de efeito multiplicador sobre o crescimento de sua influência (poder relativo) para além de sua área de inserção regional, consolidando-se como um contraponto ao poder americano no sistema internacional.
Quanto à Rússia, tem-se percebido que o conjunto de suas já conhecidas capacidades vem impondo uma série de adversidades diretas à Ucrânia e indiretas aos Estados Unidos e seus aliados, principalmente os europeus. No curto prazo, além das sanções ocidentais à economia russa e os ‘contragolpes’ sobre o conjunto da economia global, a tendência é que o conflito se prolongue por período indeterminado podendo levar à deterioração da coesão europeia em relação à liderança norte-americana.
Enquanto Índia e China defendem sua neutralidade diante do conflito russo-ucraniano, os dois países acercam-se dos russos para assegurar compras massivas de petróleo a preços mais atraentes, ainda que isso prejudique, em alguma medida, um de seus tradicionais fornecedores dessa commodity, os iranianos. Contudo, em que pesem os conflitos de interesses, Rússia e Irã, além de compartilharem uma mesma visão de mundo em diversas áreas, também se opõem à forma de inserção dos Estados Unidos no sistema internacional. Na atual conjuntura, em que os dois países estão sob fortes sanções econômicas, Rússia e Irã têm mostrado disposição para aumentar a cooperação comercial e militar bilateralmente. Por fim, não menos importante, faz-se necessário mencionar o desgaste político e econômico do ocidente decorrente de seu apoio “inabalável” à incursão militar de Israel em Gaza e apoio à Ucrânia.
Desse modo, paralelamente aos trabalhos do G20 que vêm sendo realizados no Brasil, líderes mundiais debruçam-se sobre os desdobramentos de todas as variáveis acima mencionadas e que, a cada dia, tornam a equação geopolítica mais complexa para os Estados Unidos e seus aliados encontrarem soluções para as crises que envolvem Ucrânia, Palestina, Israel, Irã e Rússia. Assim, a cinco meses da reunião de cúpula do G20, toda essa complexa e variada gama de atores e interesses geopolíticos são variáveis que desafiam o engajamento factual e simbólico dos países com os trabalhos que vêm sendo desenvolvido pela presidência brasileira neste importante fórum.
Este texto faz parte de uma série especial do Grupo de Reflexão G20 no Brasil do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília. Leia o texto anterior aqui.
* Este texto não representa necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC.
[1] Professor de Relações Internacionais do IDP-Brasília. Membro do Grupo de Reflexão G20 no Brasil do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília. E-mail: robsonvaldez@hotmail.com