Um tema relevante, para a atuação das embaixadas estrangeiras no Brasil, é compreender em que situações os tribunais locais serão competentes para julgar casos em que Estados estrangeiros são partes interessadas.
Ao contrário de outros países, o Brasil não tem uma lei específica determinando a jurisdição nacional envolvendo imunidade soberana de Estados estrangeiros. Por isso, os precedentes judiciais são relevantes para esclarecer em quais hipóteses um Estado estrangeiro pode se ver – como autor ou réu – diante de um juiz brasileiro.
Tradicionalmente, a jurisprudência brasileira adota a separação clássica entre “atos de império” e “atos de gestão” (jus imperii ou jus gestiones, no latinório jurídico) como critério de determinação da possibilidade de jurisdição local. Ou seja, quando se trata de um ato que o Estado estrangeiro praticou do alto de sua potestade soberana – um ato derivado de sua condição de Estado – este ato não pode ser reavaliado pelo juiz brasileiro. Por outro lado, se o Estado estrangeiro age como um administrador de interesses como contratante, haverá então um ato de gestão que pode ser submetido aos tribunais brasileiros.
Um exemplo comum desse entendimento são os casos envolvendo trabalhadores brasileiros em embaixadas e consulados estrangeiros. Como a legislação trabalhista é complexa, e prevê várias obrigações acessórias, é comum que o desentendimento com o Estado empregador acabe sendo resolvido na Justiça do Trabalho no Brasil – que sempre se julga competente baseada na definição de ato de gestão.
Outros precedentes conhecidos envolvem o financiamento brasileiro a Estados estrangeiros – por meio do BNDES, por exemplo. Nestes casos, o próprio contrato de financiamento já prevê a renúncia a outros tribunais em favor de uma jurisdição específica no Brasil ou de uma instituição de arbitragem internacional. E estas cláusulas já foram revalidadas pela legislação e pela jurisprudência brasileiras.
Mas sempre há situações novas envolvendo o tema da imunidade soberana. Foi o que ocorreu em um recente caso na justiça de São Paulo: como se sabe, grandes construtoras brasileiras se envolveram em escândalos de corrupção em vários países latino-americanos. Num desses casos, a construtora assinou um acordo de leniência com a República Dominicana, confessando seus atos e acordando o pagamento de pesada multa. Posteriormente, a mesma construtora pediu recuperação judicial no Brasil, e buscou incluir nas dívidas suspensas o pagamento do acordo de leniência[1].
Apesar de se tratar de um instituto novo (acordo de leniência), o juiz do caso decidiu corretamente que se trata de um ato de império, derivado da própria violação aos interesses soberanos de um Estado estrangeiro. Em suas palavras: “A imunidade de jurisdição tem efeito no caso dos autos, porque o acordo de leniência resultou de ato de império. O caráter de ordem pública de tal acordo entre as partes (…) tem por fim garantir a eficiência na administração da coisa pública, como forma de coibir práticas deletérias”.
Desta forma, o juiz garantiu o respeito à própria Constituição do Brasil (Art. 4º, V), que determina a igualdade soberana dos Estados estrangeiros. Sua consequência é que a exclusão da imunidade deve ser uma exceção, cuja invocação diminui a previsibilidade nas relações internacionais do Brasil.
A decisão judicial mencionada ainda será submetida a recurso perante o Tribunal de Justiça de São Paulo. Mas, desde logo, já constitui precedente relevante para a aplicação, a novas situações jurídicas, das garantias de imunidade aos Estados estrangeiros que atuem, como soberanos ou como gestores, no território brasileiro.
* Doutor em Direito Internacional (USP). Sócio de Barral Parente Pinheiro Advogados (www.barralparente.com.br)