Marcílio Souza
Após quase 6 meses da chegada oficial do novo coronavírus no Brasil o número de casos e mortes ainda permanecem elevados e as consequências psicossociais se estendem. A população foi colocada sob um regime de terror e tornam inúmeros os distúrbios e as sequelas. Tão ruins e prejudiciais quanto as mortes são as perdas e os danos causados aos cidadãos: econômicos, sociais, afetivos e psicológicos.
Preocupado com essas questões fui conversar com especialistas e diversas pessoas afetadas com a pandemia, especialmente os mais reclusos e com casos de morte de familiares e amigos. A partir desses contatos estruturei as ideias neste artigo, sem uma preocupação de separar as informações entre os entrevistados. A lógica estabelecida foi deixar fluir livremente o pensamento, as abordagens e as conclusões sobre o assunto.
Sabemos que o número de mortes, 782.883 no mundo e 111.100 no Brasil (19/08/2020), consiste por si só em uma grande tragédia humana, mas as perdas e danos extrapolam o findar de vidas e os prejuízos econômicos. As sequelas psicossociais devem permanecer por longo período.
Para complicar o cenário, existe a constatação, ainda não devidamente explicada, da redução em 70.684 mortes entre um mesmo período de 2019 para 2020, quando o número oficial de óbitos por COVID-19 atingiu 100 mil, nas seguintes causas de morte: pneumonia, infarto, septicemia, AVC e insuficiência respiratória. As disputas políticas e ideológicas interferiram na definição de causas e na contagem das mortes?
Entre os medos humanos, a morte figura como um dos maiores. Apesar de certa, a morte trás com ela inúmeras dúvidas e imprecisões do que vem depois, mesmo com as diversas teses religiosas, culturais, filosóficas e, até, científicas.
Quase todas as sociedade ocidentais promoveram um distanciamento dos fatores e dos assuntos relacionados à morte. Somos levados a viver sem pensar na nossa finitude. Produzimos, consumimos e vivenciamos realidades freneticamente, como se fossemos infinitos no mundo. Muitos sequer separam tempo para convívio social e afetivo, em função das suas agendas profissionais atribuladas.
De repente, todos são colocados diante de uma concreta ameaça à vida. Trazendo para o cotidiano a possibilidade de morte, ou de morte eminente, como foi divulgado pelos meios de comunicação e por diversos setores organizados da sociedade. Imagens de caixões, de covas, de pessoas com dificuldade para respirar ou entubadas, de hospitais lotados e sem vagas em UTIs, foram lançadas nas mais diversas plataformas comunicativas, especialmente nas TVs abertas, que atingem as massas.
O que normalmente é afastado das pessoas foi lançado nos seus colos, tudo sobre nossas finitude e medos, e diretamente relacionado à morte. Além do medo da morte, as pessoas passam a temer a possibilidade de causar a morte de outros, especialmente dos pais e de parentes próximos.
Dois outros fatores precisam ser considerados nesta pandemia. Os rituais de passagem com a morte que não foram efetivados, com elevado potencial para as pessoas superarem as perdas e o luto, e o medo de muitos indivíduos do sexo masculino, mas ainda alguns do feminino, de não conseguirem prover as necessidades das suas famílias. Em uma sociedade que ainda vê o sexo masculino como principal responsável e provedor das famílias, a pandemia também colocou em cheque essa máxima social.
Profissionais de psicologia e de saúde mental relatam que além dos pacientes terem evitado os consultórios, por medo de infecção e das possíveis complicações, eles mudaram o foco das queixas, das dúvidas e dos anseios nos atendimentos remotos e alternativos.
Passaram a incluir no decorrer das sessões assuntos relacionados a pandemia, como saúde, prevenção ao coronavírus, medos de serem infectados e infectarem outras pessoas, especialmente os pais e familiares, e de perderem o emprego, devido as perdas econômicas provocadas pela COVID-19. Assuntos relacionados à tristeza, depressão e ansiedade, deram lugar a temas diretamente relacionados à pandemia.
Alguns profissionais da psicologia estão retomando gradativamente os atendimentos presenciais, outros permanecem em atividades remotas, normalmente por meio de chamadas de vídeo pelo WhatsApp. Muitos pacientes e profissionais gostam do atendimento à distância, por evitar as locomoções e elevar a liberdade de muitos em se expressar mais. Tem ainda profissional atendendo em lugares públicos como parques, praças e jardins, com total agrado dos pacientes. Entretanto, muitos pacientes estão sem qualquer tipo de atendimento durante a pandemia.
Já os médicos, percebem algumas perdas na qualidade das consultas virtuais, não se pode visualizar com perfeição as cores de algumas manchas, hematomas e feridas, assim como perde a possibilidade de toques e até de perceber as temperaturas e ruídos corporais e de partes específicas do corpo. Mesmo assim, ainda é grande o número de atendimentos à distância.
No atendimento virtual aos idosos há um prejuízo no sigilo entre paciente e o médico, na medida em que o idoso quase sempre precisa de familiares para auxiliá-los durante a consulta remota, tanto no contato com as tecnologias de transmissão de imagens e sons como no momento de mostrar as partes do corpo com problemas de saúde. Nesse processo, os idosos perdem muitas vezes as suas individualidades.
Com a pandemia, de fato, segundo os profissionais da psicologia, da saúde mental e da medicina em geral, houve uma potencialização dos principais transtornos existentes na sociedade, como ansiedade, pânico, compulsão, depressão, burnout (esgotamento em decorrência de excesso de trabalho, de cobranças e de pressões), estresse pós-traumático.
Dentre estes, as compulsões por bebidas alcoólicas, pelo consumo de alimentos e drogas, licitas ou não, elevaram-se e passaram a aumentar a atenção e a preocupar os profissionais.
Estudo do Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), realizado em 23 estados e com a participação de 1.460 pessoas, aponta que o número de brasileiros com depressão praticamente duplicou nos primeiros dois meses de isolamento social. O percentual de pessoas com a doença passou de 4,2% para 8%. Já os casos de ansiedade saltaram de 8,7% para 14,9%. Em suma, a pesquisa indica um aumento nos casos de pessoas com distúrbios mentais.
A sociabilidade e o convívio grupal e familiar são constituintes das sociedades humanas e há tempos fazem parte dos seus cotidianos. Com a pandemia, repentinamente, fomos colocados em isolamentos sociais e distante das nossas rotinas cotidianas. Com o prolongamento da pandemia no Brasil, boa parte da população continua sem as vivências familiares e sociais. Nem temos ainda uma data prevista para o retorno à normalidade, se é que ela será totalmente resgatada.
Especialmente entre os idosos, normalmente já com restrições de locomoção e na realização de muitas tarefas, as mudanças bruscas no cotidiano com a pandemia promoveram quebras nas rotinas e perdas de memórias afetivas. Muitos ficaram sem contatos com os filhos, netos e outros familiares e amigos. As rotinas de visitas, de passeios e de idas a restaurantes e comércios foram perdidas.
A falta de movimentação e de atividades físicas para os idosos podem representar enormes perdas na qualidade e no tempo de vida. O próprio ato de caminhar nas proximidades das residências e pegar um pouco de sol é de extrema importância para este grupo social. Sem movimentação muitos deles estão perdendo força e massa muscular.
Distanciamentos sociais e até a solidão dos tempos modernos, quando as pessoas passaram a cada vez mais dedicar seus tempos ao trabalho e as relações sociais mais próximas, foram elevados ao extremo. São variadas as sequelas desta mudança repentina.
Não são poucos os relatos de pessoas, especialmente os com mais idade, mas não exclusivamente estes, que não saíram mais de casa desde o início dos casos e das mortes no Brasil. Muitas pessoas, além de estarem privadas dos convívios sociais, encontram-se sem a pratica de movimentos e exercícios físicos, bem como distantes do acompanhamento de doenças pré-existentes ou novas e, ainda, impossibilitados de serem avaliadas e assistidas por profissionais de saúde mental e da psicologia. Alguns moram em cidades sem casos confirmados e não saem de casa para nada, nem para ir ao banco, comprar algo ou fazer uma caminhada.
Muitas pessoas deixaram de procurar atendimentos médicos nas clínicas, nos ambulatórios e nas emergências dos hospitais nos últimos meses. Alguns com doenças crônicas deixaram de ser acompanhados e outros não buscaram auxílio para sanar novos problemas de saúde. O medo de infecção pelo novo coronavírus paralisou muita gente, que ser refugiou nos lares pensando estar protegidos, na medida que o número de infecções domiciliares é elevado. Alguns se recusam a ir a hospitais, mesmo com sintomas de patologias graves. Outros morreram em casa sem buscar auxilio médico hospitalar ou a caminho de hospitais, já em condições graves de doenças.
Mesmo em alguns estados brasileiros existindo a possibilidade de atendimentos médicos remotos, inclusive na rede pública de saúde, sabe-se que ocorreu um represamento das demandas por consultas e tratamentos de saúde. Nos próximos meses e anos teremos com certeza uma melhor visualização das consequências desse período sem os devidos atendimentos médicos.
Sabemos da presença da cultura hospitalar e medicamentosa entre os brasileiros, que por vezes buscam médicos e remédios para quaisquer pequenos problemas de saúde, mas foi real o período de abstinência da população em relação às necessidades de atendimento e de tratamento.
Pacientes com problemas cardíacos, oncológicos e circulatórios deixaram de buscar atendimentos. Muitas pessoas ganharam peso nos isolamentos domiciliares e ao mesmo tempo deixaram de movimentar e de praticar exercícios físicos, com alguns em risco de trombose e outros problemas em função da falta de movimentação.
Os profissionais de saúde, no geral, tornaram-se um caso a parte na pandemia da COVID-19. Muitos trabalhadores foram extremamente exigidos e até chegaram à exaustão. Na maioria dos hospitais a liberação de profissionais das suas atividades deu-se apenas para os que adquiriram o vírus, durante o período de transmissão, elevando os casos de crise da ansiedade, pânico e ansiedade generalizada. Apesar do contato direto de muitos profissionais com os infectados e doentes, não foram poucos os relatos de medo e de ansiedade dos profissionais, tanto de serem infectados como de transmitir para os seus familiares, amigos e outros pacientes.
No início da pandemia, sem protocolos bem definidos, por se tratar de uma enfermidade nova, de fácil infecção e rápida disseminação, os profissionais de saúde viram se obrigados a um vôo na escuridão. Apenas a partir das práticas, do conhecimento adquirido no cotidiano e dos apoios mútuos entre eles foram diminuindo as pressões, os medos e as dúvidas. Todo o sistema de saúde e as próprias rotinas dos profissionais passaram por uma grande reorganização. Hoje, os profissionais aguardam mais efetividade nos programas para reduzir os danos causados pela pandemia. O poder público e as empresas não podem negar um acompanhamento psicossocial adequado aos profissionais da saúde, verdadeiros heróis nos tempos da COVID-19.
Por outro lado, o contato prolongado nos mesmos ambientes aumentaram as desavenças familiares e entre visinhos, elevando os casos de violência doméstica no país, mesmo com uma diminuição das denúncias em decorrência do medo de se expor ao coronavírus. Apesar do número de divórcios terem caído ultimamente, estima se que as separações aumentaram e o número de entrada de pedidos de divórcios devem crescer muito nos próximos meses. Segundo levantamentos da revista Pais & Filhos, tanto houve aumento na procura de advogados para consultoria sobre divórcio como a elevação de consultas por meio do Google sobre a temática. De fato, a quarentena promoveu um represamento tanto dos casamentos como dos divórcios, oficialmente.
Entre os profissionais da saúde mental é consenso que a maioria dos suicídios são antecedidos de transtornos mentais. Uma certa explicação para a elevação dos suicídios nesse período de pandemia.
Apesar da escassez de dados oficiais agregados para o Brasil como um todo, ao analisar dados estaduais do SAMU – Serviço de Atendimento Móvel de Urgência dos seis primeiros meses de 2020, percebe-se que houve um acréscimo em torno de 20% no número de tentativas ou consumação de suicídios, que são pouco divulgados na sociedade e nos meios de comunicação, por receio do estímulo a novos casos. A instabilidade econômica e o sentimento de insegurança e de vulnerabilidade com a pandemia devem ser considerados como motivos para a elevação dos casos.
Alguns psicólogos relataram que houve um aumento da procura de atendimento por pessoas do sexo masculino, algo que tem promovido um incremento na alteração do perfil dos pacientes que procuram os psicólogos nos últimos anos. Provavelmente, o medo de perderem os empregos está levando mais homens a buscarem apoio psicológico. Mas, de fato, a quarentena imposta pela pandemia colocou todos em processos de autoconhecimento, de confronto entre o real e o mudo criado e difundido por eles nas relações sociais e nas plataformas comunicativas modernas. Na solidão do lar, a maioria teve que repensar suas vidas.
Percebe-se que embates e discussões políticas nas redes sociais se elevaram. Defensores e contrários ao uso da cloroquina e da hidroxicloroquina travaram intermináveis batalhas. Festejo de mais casos e mortes e a atribuição de culpa por elas foram inúmeros. Como em disputas por futebol, de torcidas, as redes sociais foram movimentadas. As disputas políticas entre governistas e contrários ao atual governo federal inundam a sociedade, presencialmente, nos meios de comunicação ou nas redes sociais.
Mudando de assunto, apesar da diminuição dos voluntários do Centro de Valorização da Vida – CVV em decorrência da COVID-19 o número de ligações para a ONG chegou, em diversos lugares, a aumentar em 100%. O medo de ficarem doentes e de perderem seus empregos está entre as principais motivações das chamadas. As mudanças com a pandemia elevaram o estresse e a insegurança emocional de muitos, com a manifestação de medos e de ansiedade.
Em outra perspectiva, da intensificação do pânico na sociedade, os veículos de comunicação, sem a comprovação das inúmeras estimativas de milhões de mortos no Brasil por COVID-19, passaram a dar espaço para narrativas que apresentam feitos e ações anteriores de pessoas mortas em decorrências das complicações da morbidade, para atingir o emocional das pessoas. Não são poucas as notícias como estas: “Médico e avô das gêmeas siamesas Mel e Lis morrem de COVID-19; “Médico que fez mais de 10 mil partos morre por COVID-19”; “Primeiro índio formado em contabilidade no país morre de COVID-19”; “Cientista idealizador do aplicativo ‘Monitora COVID-19’ morre por coronavírus”.
Ao mesmo tempo em que a grande maioria dos idosos, por fazerem parte do principal grupo de risco da COVID-19, foram forçados a ficarem isolados, muitos sem saírem de casa para nada, uma parte deles tem desafiado as estatísticas; passou recentemente, nos processos de reabertura, a sair das residências tão apenas para contrariar as ordens de familiares e de governos, segundo relatos de médicos e de psicólogos.
O certo e desejado é que os profissionais da saúde passem a ter melhor acompanhamento psicológico e de saúde mental neste período de pandemia e pós pandemia. Apesar da valorização inicial da categoria pela sociedade, temos informações de que alguns têm sido destratados em ambientes públicos por estarem utilizando vestimentas hospitalares, por simples medo, ou desinformação, das pessoas, deles estarem disseminando o vírus.
Com as pessoas atuando em sistema home office os profissionais de saúde mental não percebem diminuição das pressões e cobranças do mundo empresarial. Pelo contrario, em algumas áreas, como de tecnologia e de atendimento ao público, os bancários, por exemplo, houve um acréscimo das demandas e das pressões, levando muitos profissionais a surtos de ansiedade e manifestação de burnout, dentre outros distúrbios.
Da forma que a pandemia foi abordada e disseminada, tanto por organizações nacionais e internacionais de saúde como por gestores públicos e os meios de comunicação, o foco ficou no negativo, no número de infectados, de pacientes graves e de mortos. Deixando de lado o fato da doença ter um elevado número de cura, de infectados assintomáticos ou com sintomas leves e moderados. Algo que, decisivamente, contribuiu para o pânico generalizado e a elevação das sequelas psicossociais com a pandemia. Agora, resta contabilizar as perdas, os danos, os distúrbios e os transtornos. O medo, a ansiedade e o pânico teriam potencializado problemas de saúde de infectados, levando os à morte?
Entre tantas perdas e danos não podemos deixar despercebidos alguns, exclusivamente, com a mortes de pessoas com idades acima dos 55 anos. Muitos se foram ainda em pleno exercício de atividades profissionais, com vasto conhecimento, boas práticas e experiências. Outros, com idades mais avançadas, acima dos 65 ou dos 70 anos, eram, naturalmente, grandes transmissores de história, de valores e de práticas sociais e culturais. Com a morte de muitos idosos foi-se um imensurável volume de conhecimento e vivências acumuladas. Perda irreparável para a sociedade e o nosso futuro.
A realidade aponta que a pós-pandemia e a superação da doença requer atuações em outras áreas além do atendimento e tratamento médicos. Tornou-se necessário enfrentar diversas sequelas da pandemia, que vão alem de fatores econômicos e sociais. A pandemia deixa um legado de problemas psicológicos e psiquiátricos. Dentre outros, transtornos mentais, ansiedade, fobias, pânico, estresse pós-traumático, burnout, depressão, suicídios, desavenças familiares, compulsões, precisam ser enfrentados pelos poderes públicos e profissionais das respectivas áreas.
Marcílio Souza é sociólogo e jornalista, mestre e doutor em comunicação.