Rodrigo Craveiro
Mais um capítulo da crise política no Peru foi encerrado às 16h12 de ontem (18h12 em Brasília), quando o congressista Francisco Rafael Sagasti (foto), 76 anos, foi eleito o 87º presidente da história do Peru. A chapa de Sagasti teve 97 votos a favor e 26 contra, superando os 62 votos necessários. O parlamentar centrista, integrante do Partido Morado, prestou juramento como o líder do Congresso — pela linha de sucessão constitucional, ele assumirá, hoje, a Presidência do país, que ficou sem chefe de Estado, sem vice e sem presidente do Congresso, desde domingo, quando Manuel Merino entregou o poder.
Mirtha Vásquez Chuquilin (Frente Ampla), vice de Sagasti, terá a função de comandar o Legislativo. Em discurso aos colegas parlamentares, Sagasti homenageou os dois jovens mortos nos protestos que forçaram à renúncia de Merino, que permaneceu no cargo por somente cinco dias. “Hoje não é um dia de comemoração. Quando um peruano morre, principalmente se é jovem, todo o Peru fica de luto. Se ele morre defendendo a democracia, soma-se ao luto a indignação”, declarou, ao citar nominalmente Inti Sotelo, 24, e Jack Pintado, 22.
“Não podemos devolvê-los à vida, mas podemos tomar as medidas, desde o Congresso e desde o Executivo, para que isso não volte a ocorrer”, declarou, sob aplausos, com a faixa presidencial. Sagasti afirmou estar aprendendo a se “reconectar” com o país. “O que oferecemos (à nação)? O que falta ao nosso país neste momento: confiança. Confiem em nós, agiremos da maneira que dizemos”, disse. “Além da confiança, a empatia, para nos sentirmos próximos dos cidadãos.”
O terceiro presidente em uma semana será empossado, hoje, e fará um pronunciamento à nação. Antes de Manuel Merino, a Presidência do Peru era ocupada por Martín Vizcarra, afastado em 10 de novembro por incapacidade moral, sob a acusação de ter recebido subornos quando era governador de Moquegua, em 2014. Sagasti comandará o país até julho de 2021, quando se encerraria o mandato de Vizcarra.
Ontem, o Ministério Público peruano abriu uma investigação preliminar contra Merino, por suposta responsabilidade nas mortes de Sotelo e Pintado. O inquérito apura crimes de “abuso de autoridade” e “homicídio doloso”. Além de Merino, serão investigados o seu chefe de gabinete, Ántero Flores Aráoz, e o seu ministro do Interior, Gastón Rodríguez. A procuradora Zoraida Ávalos esclareceu que casos de “desaparecimento forçado” também poderão ser contemplados. O Correio tentou contato com Merino, mas um assessor disse que ele não daria entrevistas.
Conflito
Professora de direito constitucional e de política da Pontificia Universidad Católica del Peru, Milagros Campos Ramos explicou ao Correio que, para entender a crise política no país, deve-se remontar a 2016, quando ocorreu uma intensificação do conflito entre os poderes Legislativo e Executivo. “É um caso de presidencialismo sem maioria. Na vedarde, com uma maioria adversa no Congresso. Desde então, vimos interpelações, censura, a renúncia de um presidente ante a ameaça de vacância por incapacidade moral, um referendo, um pedido de antecipação as eleições, a dissolução do Congresso e o impeachment de Vizcarra”, comentou.
Milagros sustenta que um dos principais desafios do Peru tem cunho institucional. “O país não pôde solucionar o problema de manter a democracia em presidencialismo sem maioria, sem apoio do Congresso. A lição destes últimos dias é que, além do suporte do Legislativo, o presidente precisa ter a aprovação das ruas. Os protestos contínuos, em distintas cidades, que puseram fim à Presidência de Manuel Merino”, explicou. A especialista também aponta a fragilidade dos partidos políticos, uma crise de representatividade. Desde 2016, por quatro vezes, o Congresso apreciou moções de vacância presidencial por incapacidade moral.
Para Milagros, a estabilidade presidencial depende dos próprios congressistas. Ela lembra que a censura ao chefe de governo, decidida por apenas 66 votos, é “impertinente”. “A curto prazo, necessitamos que o presidente tenha estabilidade e que os partidos no Congresso possam lhe oferecer isso. A médio prazo, é preciso modificar a Constituição, para eliminar a possibilidade de vacância por incapacidade moral permanente e regulamentar um impeachment, com as garantias e a votação adequada”, avaliou. A estudiosa também aponta que o fim da proibição à reeleição imediata pode ajudar a fortalecer a carreira política no Peru.
» Eu acho…
“O Peru enfrenta um problema institucional e de representatividade. O sistema de governo, com Congresso unicameral, pode ‘esvaziar’ o presidente. Sagasti tem uma bancada e um partido, ao contrário de Martín Vizcarra.” Milagros Campos Ramos, professora Pontificia Universidad Católica del Peru.
» Duas décadas de escândalos políticos
21 de novembro de 2000
O presidente Alberto Fujimori é destituído pelo Congresso, depois de sua renúncia por fax no Japão, para onde tinha fugido em meio a um escândalo de corrupção.
Junho de 2003 – O presidente Alejandro Toledo decreta “estado de urgência” diante de uma onda de descontentamento. Os ministros renunciam em bloco.
11 de outubro de 2008 – O presidente Alan García (social-democrata) aceita a renúncia de seu gabinete após a descoberta de um caso de corrupção em favor de uma petrolífera norueguesa.
6 de julho de 2011 -Ollanta Humala assume como o primeiro presidente de esquerda em 36 anos.
Julho de 2012 – Membros do gabinete são exonerados, criticados pelos conflitos sociais que deixaram 17 mortos meses atrás.
1° de abril de 2015 – A chefe de governo Ana Jara é censurada pelo Congresso, em meio a um grande escândalo de espionagem.
21 de março de 2018 – O presidente Pedro Pablo Kuczynski renuncia em meio a uma investigação pelo caso Odebrecht. Em prisão domiciliar desde 2019.
23 de março de 2018 – Martín Vizcarra (6) assume a Presidência do Peru.
10 de outubro de 2018 – A chefe da oposição Keiko Fujimori é presa e posta em prisão preventiva pelo caso Odebrecht.
17 de abril de 2019 – Alan García se suicida antes que o prendam por suspeitas de corrupção no caso Odebrecht.
Maio de 2019 – Humala e sua esposa são condenados por lavagem de dinheiro.
16 de julho – Toledo é preso nos EUA pelo caso Odebrecht. Aguarda extradição.
30 de setembro – Vizcarra dissolve o Congresso e convoca novas eleições legislativas.
26 de janeiro de 2020 – Eleição de um novo Parlamento, dominado por alianças minoritárias populistas.
9 de novembro – O Congresso aprova destituir Vizcarra por “incapacidade moral”, após denúncias de que havia recebido subornos quando era governador em 2014.
10 de novembro – Manuel Merino, chefe do Congresso, assume como novo presidente em meio a protestos. Vizcarra questiona a “legalidade e legitimidade” do novo governo.
12 de novembro – Milhares de manifestantes anti-Merino enfrentam a polícia.
13 de novembro – Justiça peruana proíbe Vizcarra de sair do país.
14 de novembro – Nova jornada de protestos em várias cidades pedindo que Merino deixe o cargo. São registrados duas mortes e centenas de feridos em Lima.
15 de novembro – Manuel Merino renuncia ao cargo de presidente do Peru. O país fica sem liderança.
» Personagem da notícia
Intelectual e neto de herói nacional
Francisco Rafael Sagasti, 76 anos, ocupa o cargo de congressista da República — no Peru, o Congresso é unicameral — desde março passado para o período 2020-2021. Engenheiro industrial formado pela Universidade Nacional de Engenharia (em Lima), mestre em engenharia industrial pela Universidade Estadual da Pensilvânia e doutor em investigação operacional e em ciências de sistemas sociais, é neto de Francisco Sagasti Saldaña, herói nacional que lutou nas batalhas de San Francisco, Tarapacá, Tacna e La Breña.
Sagasti ocupou cargos importantes, como chefe da Divisão de Planejamento Estratégico do Banco Mundial. Entre 1972 e 1977, ocupou o cargo de vice-presidente do Diretório do Instituto de Investigação Tecnológica, Industrial e Normas Técnicas do Peru (Itintec).
Também atuou como presidente do Comitê Consultor de Ciência e Tecnologia para o Desenvolvimento das Nações Unidas, entre 1988 e 1989. Na década de 1990, lecionou na Universidade do Pacífico e na Pontifícia Universidade Católica do Peru. Sagasti escreveu mais de 25 livros e 150 artigos acadêmicos.
» Luis Arce nomeia cúpula militar
O presidente da Bolívia, Luis Arce, renovou o alto comando militar e conclamou as Forças Armadas a garantirem a estabilidade de seu governo, um ano depois que elas retiraram apoio ao ex-presidente Evo Morales. O afilhado político de Morales pediu aos integrantes da cúpula militar que trabalhem, unidos, na “defesa da democracia e da paz social, bem como na garantia da estabilidade do governo, eleito pela vontade soberana do povo, no marco da Constituição Política do Estado”.