A crítica também foi direcionada aos governos dos EUA, Europa e Japão. Brasília, ao lado desses países ricos, vem bloqueando uma proposta das economias emergentes para suspender as patentes de vacinas e permitir que o imunizante seja produzido em sua versão genérica. Sem a patente, vacinas poderiam ser produzidas por laboratórios em outras partes do mundo, acelerando o acesso dos produtos a milhões de pessoas e por preços mais baixos.
A partir desta terça-feira, a campanha liderada pela sociedade civil pressionará o Brasil e outros governos para modificar sua postura diplomática diante da pandemia. Cartas serão entregues aos embaixadores do Itamaraty em Pretória e Nova Déli, alertando que a postura do governo brasileiro é “insustentável e autodestrutiva”. Desde o ano passado, os governos da África do Sul e Índia co-patrocinam uma proposta por suspender patentes de vacinas até o final da pandemia. Mas o governo de Jair Bolsonaro passou os últimos meses atacando a sugestão.
Nesta quinta-feira, uma reunião fechada na OMC (Organização Mundial do Comércio) em Genebra (Suíça) voltará a debater o tema. Países como África do Sul, Afeganistão, Paquistão, Zimbábue, Egito, Mongólia, Chade, Indonésia, Nepal, Bangladesh, Sri Lanka, Camboja e Venezuela apoiam à proposta, além de dezenas de outros emergentes. A OMS também é favorável à ideia indiana de quebrar patentes.
O projeto de democratizar as vacinas conta com uma forte rejeição por parte dos países ricos, detentores das patentes. O Brasil, desde o começo do projeto, foi o único país em desenvolvimento a declarar abertamente que era contra a proposta, abandonando anos de liderança internacional para garantir o acesso a remédios aos países mais pobres.
Na busca por vacinas da Índia, Itamaraty reduziu críticas – Diante de uma dificuldade para conseguir vacinas produzidas pela Índia, o Brasil adotou um recuo tático em janeiro. Na reunião da OMC para tratar do tema, o Itamaraty abandonou suas críticas e optou por permanecer em silêncio. Mas Brasília tampouco saiu em defesa do projeto. Nos últimos meses de 2020, o Itamaraty chegou a ser acusado por ativistas estrangeiros de estar inundando o debate na OMC de perguntas aos indianos como forma de arrastar a negociação e enfraquecer a proposta.
A campanha lançada nesta terça-feira coloca o Brasil em uma posição radicalmente diferente da que estava no começo do século. Há 20 anos, foi a ação internacional do Brasil que levou a OMC a estabelecer regras para permitir um maior acesso a remédios. Naquele momento, a luta era para enfrentar a aids. A liderança se transformou em um dos maiores ativos da política externa de FHC e Lula, aplaudido pelas mesmas entidades que hoje lançam uma campanha contra o Itamaraty.
Monopólios custam vidas – O protesto tem a participação da entidade Médicos Sem Fronteira, mas também contou com organizações como The Delhi Network of Positive People, Indian Drug Users’ Forum (IDUF), ?International Treatment Preparedness Coalition (ITPC)-South Asia, Empower India, Focus on the Global South e Global Alliance for Human Rights, além de dezenas de grupos sul-africanos representando pacientes, médicos e pesquisadores.
Um dos atos da campanha está sendo a entrega de uma carta aos países contrários à proposta, incluindo Noruega, EUA, Japão e o Brasil. “A proposta de renunciar às patentes vem em um momento crítico da pandemia, buscando enfrentar estes desafios”, defendem as entidades, no documento que está sendo submetido nesta terça-feira. A embaixada do Japão chegou a chamar a polícia diante da presença dos ativistas que apenas queiram entregar uma carta ao governo de Tóquio.
Na avaliação das entidades, a suspensão das parentes permitiria que governos possam tomar medidas para “evitar monopólios que atrasam a fabricação doméstica, o acesso e custam vidas”. “Até hoje, mais de 100 países acolhem ou apoiam a proposta de alguma forma. Cerca de 400 organizações da sociedade civil globalmente e organizações internacionais como a Organização Mundial da Saúde, UNAIDS, UNITAID e a Comissão Africana de Direitos Humanos exortaram os governos a apoiar a proposta de derrogação com urgência”, constatam.
“No entanto, em vez de demonstrar solidariedade global na luta contra a pandemia, apoiando a proposta de renúncia, um pequeno grupo de membros da OMC optou até agora por não apoiar a iniciativa”, disseram. “Agora está claro que quanto mais tempo o vírus circular em populações desprotegidas, mais provável é que ocorram mutações. Essas mutações podem afetar todos os países – inclusive os países que se opõem à proposta de renúncia – e prolongar a pandemia. Diante de tal crise, a oposição do Brasil é insustentável e autodestrutiva”, atacam.
Aids como exemplo – Para as entidades, o Brasil precisa levar em conta o exemplo do que ocorreu no combate à Aids. Segundo eles, no final do século passado, os monopólios de propriedade intelectual sobre o tratamento do HIV atrasaram em dez anos o acesso de pacientes na África, Ásia e América Latina à terapia antiretroviral. “Isto levou a milhões de mortes desnecessárias desde o final dos anos 90 até meados dos anos 2000, quando as barreiras de patentes foram abordadas e os medicamentos genéricos contra o HIV se tornaram disponíveis”, indicaram.
“Nesta pandemia, mais uma vez testemunhamos como a desigualdade estrutural na saúde global resultou em uma luta contínua para garantir o acesso aos medicamentos, vacinas e outras ferramentas necessárias nos países em desenvolvimento”, afirmaram. “A proposta de renúncia na OMC oferece uma oportunidade para evitar uma repetição trágica do acesso desigual às tecnologias de saúde que salvam vidas, experimentado no passado”, dizem.
No documento, as entidades pedem que o Brasil “pare de obstruir a adoção da renúncia proposta na OMC e, em vez disso, expressar apoio a esta importante proposta durante as negociações formais”. “Tantas vidas dependem dela”, completam.
Para países ricos, quebrar patente não resolverá – Apesar da pressão, Europa, Estados Unidos e Japão insistem que a quebra de patentes não resolveria a questão do abastecimento de matérias-primas.
Eles também enfatizam que o atual sistema contém ferramentas suficientes para resolver quaisquer problemas relacionados à propriedade intelectual e que a implementação da proposta de renúncia minaria os atuais esforços para combater a pandemia. Um dos impactos seria afastar investimentos do setor privado. Esses países observaram que embora haja financiamento público para pesquisa e desenvolvimento, a produção e distribuição das vacinas continua sendo um risco de investimento para o setor privado.
No mês passado, na OMC, um representante do governo indiano foi explícito em constatar que o “pior dos pesadelos” se confirmou diante da incapacidade de se encontrar um acordo: não há vacinas para todos. Nova Déli alertou que é justamente a falta de produção de versões genéricas da vacina contra covid-19 que impede o abastecimento global de um imunizante. A Índia alerta que “um grande número de instalações de fabricação em muitos países com capacidade comprovada para produzir vacinas seguras e eficazes são incapazes de utilizar essas capacidades devido a novas barreiras de propriedade intelectual”.
Esta é a prova, na opinião da Índia, de que o atual sistema de patentes não é suficiente para atender a enorme demanda global de vacinas e tratamentos. Segundo o discurso da Índia, o que os países desenvolvidos disseram sobre a suficiência de tais acordos de licenciamento para aumentar as capacidades de fabricação se provou ser insuficiente. As licenças voluntárias, mesmo quando existem, estão envoltas em segredo, os termos e condições não são transparentes e o escopo é limitado a quantidades específicas, ou para um subconjunto limitado de países, encorajando assim o nacionalismo.