Liz Elaine Lôbo
Produção: Elna Souza
Segunda nação da América Latina a testar mais sua população, o Peru tomou deliberações rigorosas para conseguir evitar o alastramento do número de infectados como o toque de recolher que vai até o próximo dia 10 de maio. Em entrevista exclusiva à revista Embassy, o embaixador do Peru no Brasil, Javier Yépez, fala sobre a situação no seu país onde foi tomada uma decisão curiosa; a de não deixar homens e mulheres saírem juntos nas ruas. O diplomata explica as medidas econômicas contidas no plano “REACTIVA PERÚ”, lançado pelo governo e o impacto da Covid-19 no setor turístico, um dos mais afetados economicamente.
Yépez explica que grande população indígena está sendo bem assistida e bem cumprindo bem e até mais rigorosos em relação às novas regras. Até o diz 26 de abril, segundo o embaixador, apenas um índio faleceu, vítima do novo coronavírus. O governo traduziu para onze línguas indígenas e divulgou amplamente todo o material informativo sobre a pandemia. De acordo com Yépez, a embaixada auxiliou o repatriamento de mil turistas brasileiros que estavam no Peru. Leia agora a íntegra da entrevista.
Embassy – De que forma o Peru está enfrentando a epidemia do Covid-19?
Desde que se teve conhecimento da epidemia, o governo peruano sempre procurou adotar as medidas mais antecipadas, eficazes e abrangentes para combatê-la. Em 15 de março, apenas nove dias após a identificação do primeiro caso no país, foi decretado um estado de emergência nacional com três regras principais: quarentena obrigatória de toda a população; fechamento total das fronteiras pelas vias terrestre, aérea e aquática; e suspensão de viagens dentro do território nacional. Em 18 de março, as restrições ficaram mais rígidas, estabeleceu-se a “imobilização social obrigatória” (toque de recolher), que atualmente vai das 18 h às 5h da manhã seguinte. Essas medidas foram prorrogadas diversas vezes e, atualmente, encontra-se vigente até 10 de maio. Paralelamente, a fim de aliviar os graves efeitos econômicos, foi lançado um pacote de ajuda para os trabalhadores formais e informais, as empresas e a população vulnerável, com recursos por um total de U$$ 25 milhões (mais de R$ 150 milhões). Esse número representa cerca de 12% do PIB total do país, sendo considerado como o pacote mais agressivo da América Latina para reduzir os impactos econômicos da pandemia.
Das medidas econômicas mencionadas, cabe ressaltar os subsídios monetários estabelecidos para favorecer uma porcentagem significativa da população que não recebe renda mensal fixa ou que desenvolvem atividades informais. Inicialmente, foi dado um bônus diferenciado para lares em condição de pobreza e trabalhadores independentes, no valor de cerca de R$ 600. Posteriormente, o chamado “bônus familiar universal”, no valor de cerca de R$ 1.200, destinados aos dois grandes grupos, somando um total de quase 7 milhões de famílias.
Ao mesmo tempo, aos trabalhadores formais lhes foi permitido retirar excepcionalmente, parte dos fundos acumulados dos benefícios sociais e previdenciários no valor de até R$ 3.200. Foram suspensos os descontos que normalmente são aplicados àqueles que são afiliados nos sistemas de previdência privada. No caso das empresas, além do adiamento temporário das obrigações tributárias e um fundo direto de apoio financeiro de mais de R$ 1,3 bilhão, foi lançado o plano “REACTIVA PERÚ”. Por meio dele, o governo destina pouco menos que R$ 50 bilhões com objetivo de que os bancos privados concedam empréstimos garantidos ao 98% pelo Banco Central de Reserva, para as 350 mil micro e pequenas empresas existentes no país.
Da mesma forma, foi promovida a compra de diversos suprimentos médicos, entre os quais se destaca um lote massivo de testes, o que permitiu com que o Peru seja o segundo país da América Latina a testar mais sua população. É o primeiro em termos relativos, com cerca de 300 mil testes realizados até hoje, medida que, como bem sabemos, é essencial para conhecer a verdadeira incidência da doença através da identificação e localização adequada dos casos.
Embassy – Entre as medidas do pacote econômico lançado pelo governo peruano, qual o senhor considera mais importante para minimizar as perdas financeiras do país?
Todas as medidas adotadas são de grande importância. Se tivesse que eleger uma delas, seria a do programa “REACTIVA PERÚ”, anteriormente mencionado, pois em um país como o Peru, onde a atividade privada constitui o principal motor da economia e que o impulso empreendedor das pequenas e microempresas passou a ser a fonte de subsistência de milhões de pessoas, resulta essencial que se mantenha o circuito econômico através da chamada “cadeia de pagamento”, e que ao mesmo tempo as empresas de menor tamanho tenham acesso aos empréstimos garantidos pelo Estado que lhes permitam continuar funcionando.
O setor turístico está sendo um dos mais afetados economicamente pela pandemia, não só no Peru e no Brasil, mas em todo o mundo. No caso do Peru, dentro do pacote econômico lançado pelo Governo, um dos grandes objetivos é, justamente, proteger ao enorme grupo de empresas e pessoas que se dedicam a essa atividade, que infelizmente parou quase por completo no país.
Embassy – O governo tomou duas decisões curiosas, como a de não deixar homens e mulheres saírem juntos nas ruas e de não criminalizar os militares. Qual o objetivo disso?
Em relação à primeira medida, a lógica era intensificar os índices de isolamento de até 50%, com o entendimento de que homens e mulheres dividem a população em aproximadamente duas metades. Quando se cumpriu a medida, ocorreu que nos dias das saídas das mulheres, foram registrados índices mais acentuados de circulação nas ruas, em razão de que na maioria dos lares do Peru, as compras são feitas por pessoas do gênero feminino. O governo, ao perceber esse fenômeno, decidiu por deixar sem efeito tal regra.
No que diz respeito a “Lei de Proteção Policial”, que envolve policiais e militares, trata-se de uma norma que não tem relação com a pandemia da COVID-19. Ela foi diretamente promulgada pelo atual Congresso, que assumiu funções no último dia 16 de março, e pelo qual o próprio Presidente Martín Vizcarra expressou sua discordância. Na visão dele, a regra contraria o princípio legal de proporcionalidade e inclusive infringe os direitos humanos, ao eximir a responsabilidade penal dos policiais ou militares que tenham causado lesão ou morte no exercício de suas funções. O Presidente tentou vetar a lei o ano passado, baseado nas objeções formuladas pelo Ministério da Justiça e Direitos Humanos, mas não teve êxito, em razão do Congresso estar dissolvido naquele momento.
Embassy – O Peru tem uma grande população indígena, em áreas de difícil acesso. De que forma o governo se cuidando para que eles não sejam contaminados durante essa epidemia?
De fato, existem milhões de peruanos que pertencem às comunidades indígenas, tanto na região andina do país como na região amazônica, que buscam ser permanentemente integrados à rede nacional de combate à doença. Em um esforço conjunto dos Ministérios da Saúde e Cultura, todos os documentos informativos sobre a COVID-19, elaborados pelo governo, foram traduzidos para onze línguas indígenas e amplamente divulgados entre os povos originários do país. Estes cumpriram corretamente as medidas de confinamento, e inclusive foram muito mais rigorosos que o resto da população, o que se evidência no fato de que, no momento da presente entrevista, só foi registrado a morte de um indígena peruano como consequência do coronavírus, no dia 26 de abril.
Embassy – De que forma a embaixada já ajudou e está ajudando os cidadãos peruanos no Brasil? Quantos eles são?
Assim que foi decretado o Estado de Emergência no país, a embaixada sob minha chefia e os consulados gerais do Peru no Brasil, procedemos em realizar as providências e articulações necessárias com nosso governo e com as autoridades brasileiras. Da mesma forma, contactamos as companhias aéreas com o objetivo de habilitar voos humanitários de repatriação para as centenas de cidadãos peruanos que se encontravam no país e foram prejudicados pela consequência pelo fechamento das fronteiras. Como resultado dessas intensas coordenações, entre os dias 16 de março e 16 de abril, foram realizados seis voos de repatriação que levaram 1.066 compatriotas de volta ao Peru. Todos os passageiros tiveram que cumprir uma quarentena de 14 dias em locais especialmente organizados pelo Ministério da Saúde, em conformidade com as normas de saúde estabelecidas pelo governo peruano.
Até que se programem novos voos de repatriação e/ou se decrete a reabertura das fronteiras, os turistas peruanos que ainda se encontram no Brasil, estimados em cerca de 400, continuarão recebendo assistência e orientação permanente por parte dos consulados. Nos casos de comprovada a vulnerabilidade econômica, eles receberão ajuda econômica direta para hospedagem e alimentação.
No que diz respeito aos peruanos residentes no Brasil, aproximadamente 50 mil no total, foi recordado a estes a obrigação para que cumpram estritamente as medidas dispostas pelos estados onde residem, sem prejuízo da assistência consular que nossas representações oficiais continuam fornecendo no país.
O Ministério das Relações Exteriores do Peru e a Embaixada do Brasil em Lima estabeleceram uma coordenação muito positiva e fluida, que permitiu a saída de vários voos humanitários de Lima e Cusco com destino a São Paulo, com mais de mil turistas brasileiros repatriados. Situação semelhante ocorreu com as demais embaixadas estrangeiras credenciadas no Peru, que também conseguiram repatriar a maioria dos seus cidadãos.
Devo destacar aqui o ótimo canal de comunicação que pude criar com o embaixador do Brasil no Peru, Rodrigo Baena, que fez possível para que alguns dos voos de repatriação fossem aproveitados pelos dois países para o transporte dos seus nacionais nos respectivos trajetos de ida e volta. Aproveito esta oportunidade para reiterar minha gratidão às autoridades brasileiras, em particular ao Itamaraty, pela imensurável disposição demonstrada em realizar a repatriação dos cidadãos peruanos e brasileiros.