Marina Gonçalves
O Haiti está mergulhado em um vazio político há mais de uma semana, desde que o presidente Jovenel Moïse decidiu se manter no poder depois de 7 de fevereiro, alegando que o seu mandato de cinco anos acaba apenas em 2022. Mesmo que todas as instituições tenham se manifestado contra sua permanência — Suprema Corte, Conselho Superior da Corporação dos Juízes (CSPJ), Ordem dos Advogados e várias organizações da sociedade civil — Moïse insiste em não deixar o cargo e vem aumentando a repressão contra manifestantes que têm saído às ruas de várias cidades do país.
Segundo analistas haitianas ouvidas pelo GLOBO, o desfecho da crise dependerá em boa parte da posição dos Estados Unidos, que se mantêm como a potência mais influente na nação caribenha. O Brasil, embora tenha comandado por 13 anos, até 2017, a força de intervenção da ONU no Haiti, deixou de ter papel relevante no país.
Para o presidente Jovenel Moïse, seu mandato vai até fevereiro de 2022. Ele alega só ter assumido em fevereiro de 2017 e afirma que um governo interino ocupou o primeiro ano de seu mandato, após um processo eleitoral caótico, marcado por acusações de fraude. Os especialistas, no entanto, defendem que a Constituição é clara e sem ambiguidades: as últimas eleições foram realizadas em 2016 e o mandato de Moïse terminou em 7 de fevereiro de 2021.
Segundo uma reconhecida diplomata haitiana, que pediu para não ser identificada, com a manobra Moïse tenta ganhar tempo para se manter no poder através de eleições com regras que o favoreçam, “e seus apoiadores internacionais tentam esconder seu lamentável fracasso”. Após uma década de estabilização, diz ela, “parece ser difícil para os guardiões deste país reconhecer que uma nova transição é necessária”.
Internamente, não há um órgão capaz de decidir sobre a questão. A Constituição alterada em 2011 previa a criação de um Tribunal Constitucional, o que nunca ocorreu. Desde o ano passado, Moïse governa por decreto presidencial, após suspender dois terços do Senado, toda a Câmara dos Deputados e todos os prefeitos do país. As Forças Armadas, recentemente reorganizadas — o ex-presidente Jean-Bertrand Aristide desmantelou o Exército em 1995 — são leais ao governo. A Polícia Nacional foi politizada e atualmente está dividida, como ilustra a existência de dois sindicatos rivais recentemente criados, explica a socióloga Sabine Manigat, da Universidade Quisqueya.
Por isso, afirma ela, o papel dos Estados Unidos será fundamental para a resolução da crise, pois a potência hemisférica é “o coração da política haitiana”.
— É o principal suporte deste poder — afirma Manigat.
Embora tenha apoiado Moïse inicialmente, o governo de Joe Biden disse na semana passada que está “profundamente preocupado” com a fragilidade das instituições do país. Na última quinta-feira, o embaixador do Haiti nos EUA pediu à comunidade internacional que ajude a mediar as negociações entre o governo e a oposição, à medida que a crise constitucional se intensifica. Mesmo assim, rejeitou os pedidos para que Moïse deixe o cargo.
— A posição do novo governo americano, que está evoluindo quase diariamente, será fundamental para o que acontecerá politicamente no Haiti. Seu apoio ao atual regime é a chave para qualquer resultado possível. As audiências no Congresso sobre o país devem ocorrer no início desta semana. O Washington Post expressou explicitamente uma posição editorial afirmando que ‘Jovenel é o problema’ — destaca Manigat.
Em 2017, a missão de estabilização da ONU, como era chamada, foi substituída por uma missão de assessoria à reforma da Polícia Nacional, e, em 2019, por uma missão política. Desde então, o Brasil vem perdendo influência na nação caribenha. Segundo a diplomata haitiana, “o Brasil continua fazendo parte do grupo informal de embaixadores dos chamados países amigos, com União Europeia, Nações Unidas e OEA, mas deixou completamente os Estados Unidos decidirem desde que o presidente Jair Bolsonaro chegou ao poder”. Consultado sobre o crise, o Itamaraty não se pronunciou até o momento.
Em 7 de fevereiro, Moïse denunciou uma suposta tentativa de golpe e deteve 23 pessoas, incluindo o juiz da Suprema Corte do Haiti Yvickel Dieujuste Dabresil — ele deixou a prisão dias depois, mas permanece sob supervisão judicial, segundo seus advogados. Dias depois, o presidente determinou a aposentadoria imediata de três juízes, por meio de decreto, ação considerada inconstitucional por analistas e juristas do país.
— As condições ilegais de prisão do juiz, do inspetor de polícia e outras personalidades indicam claramente que o alvo dessas ações são o sistema de Justiça e a polícia como instituições nacionais. Pode-se incluir também a demissão arbitrária do escrivão encarregado dos arquivos desses prisioneiros como outro exemplo da postura autoritária do Executivo — completa Manigat.
A oposição, por sua vez, está fragmentada em três grupos principais. O primeiro reagrupa líderes políticos de direita e de centro-direita com pouca ou nenhuma base organizacional. Eles não questionam o status quo, mas muitas deficiências de governança da atual administração afetam seus interesses — muitos são do setor privado ou têm vínculos estreitos com ele.
Um segundo grupo é composto pelos principais partidos políticos tradicionais, liderados por ex-parlamentares e ministros. Eles são predominantemente social-democratas e lideram o processo de organização do governo interino que substituiria o presidente. Por último, há um pequeno número de partidos bastante estruturados, alguns deles com uma base social conhecida, mas que atuam como outsiders.
Além dos partidos políticos, uma grande associação de organizações da sociedade civil, formada por sindicatos, coletivos de jovens, feministas e defensores de direitos humanos, vêm pressionando o governo nas ruas, apesar da forte repressão. Na semana passada, a polícia haitiana disparou gás lacrimogêneo contra centenas de manifestantes e prendeu jornalistas que cobriam a manifestação.
Em Porto Príncipe, assim como em muitas outras cidades, a agitação social é diária. No último domingo, uma marcha nacional teve participação maciça na capital e outras cidades. Nesta segunda-feira, magistrados de juizados e tribunais iniciaram uma greve por tempo indeterminado, exigindo que Moïse respeite a Constituição e denunciando a prisão ilegal e aposentadoria forçada de juízes do Tribunal de Cassação, nome local da Suprema Corte