Aos gritos de Allahu Akbar (“Alá é grande!”, em árabe) e armado com uma faca, o tunisiano Brahim Aouissaoui, 21 anos, invadiu a Basílica de Notre-Dame, em Nice (sul), por volta das 9h (5h em Brasília). Perto da pia de água benta, decapitou uma idosa que rezava no local. Também degolou o sacristão do templo, Vincent Locques, 45 anos, casado e pai de dois filhos. A brasileira Simone Barreto Silva, 45, mãe de três filhos, ficou ferida gravemente e tentou se refugiar em uma cafeteria próxima, onde morreu.
A polícia chegou ao local rapidamente e disparou várias vezes contra Aouissaoui. Segundo o prefeito de Nice, Christian Estrosi, mesmo medicado, o assassino repetia a expressão muçulmana, chamada de Takbir. Estrosi também citou a ameaça do “islamofascismo”. As autoridades divulgaram que Aouissaoui entrou no país no início deste mês, por meio da ilha italiana de Lampedusa, no Mediterrâneo.
O presidente Emmanuel Macron visitou a cidade da Riviera Francesa, no fim da manhã, e avisou: “Não cederemos nem um milímetro” (na defesa dos valores franceses). “A França está sob ataque”, admitiu. O chefe de Estado elevou o nível de segurança em todo o país para o mais alto patamar e aumentou de 3 mil para 7 mil os militares que patrulham as ruas na Operação Sentinela. “Se somos atacados mais uma vez, é por valores que são nossos: a liberdade, a possibilidade de acreditarmos livremente e de não cederemos a nenhum espírito de terror”, declarou. Os líderes dos 27 países-membros da União Europeia (UE) repudiaram a barbárie de ontem e apelaram por “diálogo e compreensão entre comunidades e religiões, em vez de divisão”. Em comunicado conjunto, externaram sua unidade e firmeza na solidariedade à França e na luta comum contra o terrorismo e a violência extremista.
O atentado em Nice ocorreu um dia depois de o governo da Turquia ameaçar Paris depois da publicação, por parte do Charlie Hebdo, de uma caricatura em que o presidente Recep Tayyip Erdogan aparece de cueca, com cerveja na mão, levantando o hijab (véu islâmico integral) de uma mulher e gritando: “Oh! O profeta!”. O líder turco também acusou o colega francês de islamofobia. Ontem, a Turquia condenou “firmemente” o ataque “selvagem” e externou sua solidariedade.
O triplo assassinato de ontem também coincide com o julgamento de cúmplices da carnificina na redação do semanário satírico — em 7 de janeiro de 2015, os irmãos franceses Amedy e Chérif Kouachi invadiram a sede do Charlie e executaram quatro jornalistas, quatro cartunistas, dois policiais, um visitante e a recepcionista do prédio. Em 14 de julho de 2016, Nice foi alvo de um massacre perpetrado pelo também tunisiano Mohammed Lahouajej Bouhlel. Ele usou um caminhão para atropelar e matar 86 pessoas, além de ferir cerca de 300.
Testemunha
O agente de segurança aeroportuária Florent Boyssou, 31 anos, relatou ao Correio os momentos de pânico que vivenciou quando caminhava rumo a uma drogaria, na manhã de ontem. “Por volta das 9h, eu passava pela rua de trás da Basílica de Notre-Dame, quando escutei gritos de pavor e vi pessoas correrem. Não sabia o que tinha acontecido. Nessas horas, a gente não pensa. Então, comecei a correr o mais rápido que pude”, contou. “Todo mundo estava amedrontado e tentava fugir. Vi uma mulher carregar o filho nos ombos, enquanto corria e chorava. Eu e outros tentamos nos esconder atrás dos carros ou na entrada dos prédios.”
Boyssou disse que, na noite de ontem, uma multidão caminhou até a Basílica de Notre-Dame, acendeu velas em memória dos mortos e entoou a Marselhesa, o Hino Nacional da França. Entre os presentes, estavam vários muçulmanos. “Nós, franceses, desejamos ser ouvidos. Então, tomamos as ruas para mostrar que somos mais fortes do que o terrorismo”, afirmou.
Repercussão
O mundo reagiu com forte indignação ao triplo assassinato em Nice. O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, exigiu o fim imediato dos atentados. “Nossos corações estão com o povo da França. Os Estados Unidos estão com nosso mais antigo aliado nesta luta”, escreveu Trump no Twitter. “Esses ataques terroristas islâmicos radicais precisam parar imediatamente. Nenhum país, a França ou qualquer outro, consegue aguentar por muito mais!” Por sua vez, o democrata Joe Biden, rival de Trump nas eleições de 3 de novembro, prometeu que o seu eventual governo “trabalhará com aliados e parceiros para evitar a violência extremista de todas as formas.”
O secretário-geral da ONU, António Guterres, “condenou veementemente o ataque atroz” e reafirmou a solidariedade das Nações Unidas com a população e o governo da França”. A Turquia condenou “firmemente” o ataque “selvagem” a Nice e manifestou sua “solidariedade”, apesar das tensões diplomáticas entre os dois países.
Consternação papal
O papa Francisco pronunciou-se sobre a tragédia. Por meio do Twitter, o pontífice afirmou estar próximo da comunidade católica de Nice e em luto “após o ataque que semeou a morte num lugar de oração e de consolação”. “Rezo pelas vítimas, por suas famílias e pelo querido povo francês, para que possam responder ao mal com o bem”, declarou.
“Diga aos meus filhos que eu os amo”
A imagem de Jesus Cristo na capa de seu perfil do Facebook e a mais recente mensagem postada apontam para uma pessoa religiosa. “Onde estiveres, Deus te guarde. Onde andar, Deus te guie. O que decidir Deus te ilumine”, publicou, em julho passado. Dois meses antes, ela tinha escrito: “Que a flecha do amor penetre a humanidade”. O ódio e os golpes de faca desferidos pelo tunisiano Brahim Aouissaoui selaram tragicamente o destino de Simone Barreto Silva. A baiana de 45 anos, mãe de dois meninos e de uma menina, tentou buscar ajuda na cafeteria L’Unik, mas não resistiu aos ferimentos. “Ela atravessou a rua, toda ensanguentada, e meu irmão e um dos nossos funcionários a recuperaram, a colocaram no interior do restaurante. (…) Ela dizia que havia um homem armado dentro da igreja”, disse à TV France Info, ainda em estado de choque, Brahim Jelloule, um dos proprietários da L’Unik. Segundo testemunhas, pouco antes de morrer, Simone pediu: “Diga aos meus filhos que eu os amo”.
Natural de Salvador, ela vivia em Nice havia três décadas, onde organizava atividades culturais e cuidava de idosos. Na França, não perdeu as raízes e ajudou a organizar a Festa e Iemanjá de Nice. A família de Simone somente teria sido avisada quase seis horas depois do atentado.
A soteropolitana Ivana Gomes, 46, conhecia Simone desde 1995. “Nós nos conhecemos em Salvador. Viemos trabalhar em um grupo de dança do qual a irmã dela era diretora artística, aqui em Nice. Éramos muito amigas, super cúmplices, nos entendíamos superbem e tínhamos aquela coisa de signos. Éramos librianas. Ela era superanimada, feliz com a vida, divertida, sorridente e brincalhona, uma moleca”, contou ao Correio a assistente escolar. A vida as separou quando Ivana mudou-se para Paris. “Nós nos encontramos para comemorar o 45º aniversário dela, no último dia 10.” Ivana confirma a versão sobre as últimas palavras de Simone.
Bolsonaro
O presidente Jair Bolsonaro afirmou, ontem, que soube de “notícias tristes mundo afora, de decapitação de pessoas”. “De pessoas, não, de cristãos, na França. Parece uma brasileira também foi esfaqueada. O mundo tem que se preocupar com isso. Falei na ONU, agora, sobre a tal da cristofobia”, afirmou. “Nós admitimos qualquer religião, mas não podemos admitir a intolerância, ainda mais desta forma. (…) Tem bairros na França que parece que tem uma religião dominando lá, e alguns países também”, acrescentou.
Em nota do Ministério das Relações Exteriores, o governo brasileiro deplorou e condenou veementemente o “atroz atentado” em Nice. “O presidente Jair Bolsonaro, em nome de toda a nação brasileira, apresenta suas profundas condolências aos familiares e amigos da cidadã assassinada em Nice, bem como das demais vítimas, e estende sua solidariedade ao povo e ao governo franceses”, afirma o texto. Segundo o comunicado, “o Brasil expressa seu firme repúdio a toda e qualquer forma de terrorismo, independentemente de sua motivação, e reafirma seu compromisso de trabalhar no combate e na erradicação desse flagelo, assim como em favor da liberdade de expressão e da liberdade religiosa”. “Neste momento, o governo brasileiro manifesta, em especial, sua solidariedade aos cristãos e pessoas de outras confissões que sofram perseguição e violência em razão de sua crença”, acrescenta.