Jorge Vasconcelos
Uma grande crise institucional desponta como o próximo capítulo da histórica eleição presidencial americana. Republicanos e democratas devem trocar a apertada disputa por votos por uma também acirrada batalha judicial. Antes mesmo do anúncio do vencedor, Donald Trump deu sinais de que apostará pesado na Justiça para se manter na Casa Branca. Alegando suspeitas de fraudes, pediu judicialmente a recontagem dos votos em Wisconsin e entrou com ações para suspender a apuração em Michigan e Pensilvânia, outros dois estados-chave. A ofensiva do atual presidente levou milhares de manifestantes às ruas de Nova York e de outras cidades, em defesa da legitimidade das eleições.
Embalado pela perspectiva de vitória, Joe Biden passou a falar como o próximo presidente, pregando a união do país e até mesmo antecipando decisões. Às 22h30 (horário de Brasília), a seis votos de conquistar a Casa Branca, o democrata informou, pelo Twitter, como pretende lidar com um tema polêmico da gestão republicana: a saída do pacto climático. “Hoje (ontem), a administração Trump saiu oficialmente do Acordo do Paris. Em exatamente 77 dias, a administração Biden reverterá isso”, escreveu. O tom assertivo deu fim a mensagens típicas de candidatos à espera do resultado das urnas, como “Estamos confiantes” e “Vamos manter a fé”.
Horas antes do texto emblemático, em um pronunciamento, Biden evitou declarar vitória, mas pediu o fim da polarização que marca o país há quatro anos. “Competi como democrata, mas vou governar como um presidente americano. É hora de deixar a campanha para trás. Não somos inimigos. O que nos une como americanos é mais forte do que o que nos separa”, ressaltou.
Sem abrir mão da cautela, Biden também comemorou o fato de ter ultrapassado a marca de 70 milhões de votos. “Tenho mais votos do que qualquer candidato na história”, festejou nas redes sociais. O recorde anterior, de 69,4 milhões, foi conquistado por Barack Obama, em 2008, na disputa contra John McCain. Segundo estimativas do Projeto Eleições nos EUA, organizado pela Universidade da Flórida, 160 milhões de pessoas foram às urnas neste ano, na maior participação eleitoral do país em 120 anos. A votação antecipada também foi histórica: cerca de 101 milhões.
Até o fechamento desta edição, o candidato democrata havia conquistado 264 delegados do colégio eleitoral, graças, em parte, à reviravolta em Wisconsin e em Michigan, estados onde Trump saiu vitorioso em 2016. O republicano tinha 214 — são necessários 270 para chegar à Casa Branca. Na primeira noite da contagem dos votos, o cenário sinalizava uma vitória republicana. Na madrugada, porém, textos escritos por Trump em sua conta do Twitter passaram a indicar preocupação com uma reação democrata. Reiterando as ameaças de que judicializaria o pleito, o atual presidente disse que, por direito, havia ganhado a eleição e recorreria à Suprema Corte para impedir uma “fraude”.
“Queremos que a lei seja usada de maneira adequada. Por isso, iremos ao Supremo Tribunal dos Estados Unidos. Queremos que todas as votações parem. Não queremos que eles encontrem cédulas às quatro da manhã e as adicionem à lista”, escreveu o presidente, completando em seguida: “Isso é uma fraude para o povo americano. Isso é uma vergonha para o nosso país. Estávamos nos preparando para vencer esta eleição. Por direito, vencemos esta eleição. Iremos para a Suprema Corte dos Estados Unidos. Queremos que todas as votações parem.”
“Ultrajante”
A gerente de campanha de Biden, Jen O’Maley Dillon, emitiu um comunicado reagindo às declarações de Trump. “Se o presidente cumprir sua ameaça de ir ao tribunal para tentar impedir a tabulação apropriada dos votos, nós temos equipes jurídicas de prontidão e preparadas para serem enviadas e resistirem a esses esforços”, informa um trecho do texto. “A declaração (…) tentando parar a contagem dos votos propriamente ditos foi ultrajante, sem precedentes e incorreta”, completou Jen O’Malley Dillon, ressaltando, em seguida, que a afirmação de Trump é uma “tentativa flagrante de retirar os direitos democráticos dos cidadãos americanos”.
Horas mais tarde, em meio a uma avalanche de tuítes, o presidente americano afirmou, sem apresentar provas, que havia perdido a liderança em vários estados-chave após uma suposta carga “surpresa” de cédulas. Ele referia-se, aparentemente, aos votos postais que, segundo a legislação de vários Estados, são contados mesmo se chegarem às autoridades eleitorais depois de 3 de novembro, quando a eleição foi encerrada. A publicação do presidente foi marcada pela rede social com um alerta de que o conteúdo “poderia ser enganoso”.
Para o cientista político Juscelino Filgueiras Colares, professor da Faculdade de Direito da Case Western Reserve University, de Cleveland, Ohio, a batalha judicial que se avizinha pode trazer desgastes à imagem externa dos EUA. “A judicialização é inevitável, pois há irregularidades documentadas. Risco institucional não existe, pois, após eventuais recontagens e ações judiciais, o perdedor acatará o resultado. Entretanto, há um desgaste na imagem externa do país, pois não se espera que manobras eleitorais como as que se vê em países menos desenvolvidos se apresentem no regime democratico-constitucional mais antigo e sólido do Ocidente.”
PALAVRA DE ESPECIALISTA
Sem sucesso
“Trump sabe que perdeu, mas está tentando usar o sistema judicial, como sempre fez em seus negócios, para mudar a situação, mas não vai ter sucesso. Ele simplesmente perdeu e espera que, ao ir aos tribunais e exigir a recontagem dos votos, possa ganhar tempo para mudar a dinâmica da disputa. Todos os votos têm de ser certificados até 14 de dezembro, e ele espera que, em um ou outro estado, eles consigam fazer com que uma legislatura republicana indique uma lista diferente de eleitores para um estado em que Biden venceu. Mas Trump afirma que ele, Trump, realmente venceu. Nesse ponto, a Suprema Corte não tem base para intervir na contagem dos votos.”
James Naylor Green, historiador e cientista político, professor da Brown University, de Providence, Rhode Island
Estratégia arriscada
Analistas políticos colocaram em xeque a estratégia adotada por Donald Trump de judicializar as eleições presidenciais e tentar levar a questão à Suprema Corte. O entendimento é o de que o tribunal tem sido muito cauteloso sobre se envolver em temas eleitorais, regidos pelas leis estaduais.
A decisão do ano 2000, por exemplo, que definiu a eleição a favor do republicano George W. Bush, por exemplo, deixou muitas perguntas sem resposta sobre a votação na Flórida, razão pela qual a Corte agora é ainda mais diligente em relação ao assunto, que pode danificar sua imagem perante a sociedade.
Entrar diretamente na corrida presidencial deixaria sob os holofotes os seis membros conservadores e três liberais da Suprema Corte. Essas luzes exporiam, especialmente, a juíza Amy Coney Barrett, que foi escolhida por Trump e somou-se ao colegiado há poucos dias.
Trump disse reiteradamente que apressou a nomeação de Barrett em parte para que estivesse em funções caso surgissem problemas nas eleições. “A Suprema Corte não tem que intervir”, afirmou Derek Muller, professor de direito da Universidade de Iowa. “Acho que era necessário no ano 2000, mas não está claro que seja o mesmo agora”, acrescentou.
Membro do Bundestag, o Parlamento alemão, Michael Georg Link também criticou as alegações de Trump de fraude nas eleições americanas. Para o deputado, à frente de um grupo de observadores europeus que acompanharam a votação nos EUA, o comportamento do republicano mina a confiança na democracia, sobretudo pela falta de evidências de irregularidades.
“Alegações infundadas de deficiências sistemáticas, notadamente do presidente em exercício, inclusive na noite da eleição, prejudicam a confiança pública nas instituições democráticas”, assinalou o parlamentar alemão.
Em um relatório preliminar, a missão indicou que os comentários de Trump durante sua campanha foram vistos, por muitos, como algo que poderia aumentar a “violência por motivação política” após o pleito.