De acordo com relatos colhidos pelo jornal Folha de S.Paulo, Shirley Carvalhêdo Franco tinha ingerência na rotina da embaixada, chegando a ocupar uma sala no local. Os entrevistados afirmam ainda que ela praticava assédio moral e proferia ofensas racistas contra guineenses que trabalham para a missão diplomática.
A reportagem ouviu sete pessoas, brasileiras e locais, de diferentes níveis hierárquicos e vínculos variados com a representação. Eles falaram em condição de anonimato, pois temem retaliações. Shirley teria chamado os guineenses de “macacos” e dito que eles “só servem para fazer sexo, não para trabalhar”.
Uma servidora contou que, em agosto, a embaixatriz teria impedido o marido de buscar substitutos para dois postos de ministras, após as titulares pedirem para serem removidas, e outros dois de nível superior que ficaram vagos. Shirley teria dito que ela própria iria assessorar Franco e “moralizar” o órgão.
Após denúncias, a Corregedoria do Itamaraty instaurou uma investigação que resultou na assinatura, em 8 de novembro, de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) por parte de Fábio Franco, procedimento administrativo aplicado a irregularidades “de menor potencial ofensivo”.
No TAC, enviado à reportagem, o embaixador declarou “reconhecer a inadequação da sua conduta” e se comprometeu a cumprir deveres e proibições previstos em lei para servidores. Ele voltará ao Brasil dois anos antes do previsto, e o caso será encerrado. O diplomata assinou o termo por descumprimento do artigo 117, inciso 6º, da lei 8.112/90, que proíbe ao agente público transferir “a pessoa estranha à repartição […] o desempenho de atribuição que seja de sua responsabilidade ou de seu subordinado”.
A reportagem enviou emails para Fábio e Shirley Franco pedindo respostas às acusações, e o Itamaraty informou ter enviado o contato da repórter ao embaixador. Até a publicação desta reportagem, eles não responderam aos questionamentos.
Como não é competência do ministério abrir processo administrativo contra a embaixatriz, já que ela não é servidora, a apuração não aborda os relatos de injúria racial e assédio moral. Shirley é professora da Faculdade de Ciências da Informação da UnB e está em licença não remunerada desde 2013.
Quatro entrevistados confirmaram que ela ocupava uma sala na embaixada. De lá, teria controlado processos administrativos, de mudanças nos horários de funcionários a autorizações para compras, e interferido principalmente na área cultural. Segundo eles, Shirley dizia ter aval do marido para atuar assim.
Na página oficial da repartição no Facebook, Shirley aparece em vídeos de cerimônias online apresentadas pelo embaixador ou conduzindo, ela própria, os eventos. Segundo os relatos, a embaixatriz assumia o lugar que seria de Ticiana Souza, diretora do Centro Cultural Brasil-Guiné-Bissau –procurada, Souza disse apenas que “já foram tomadas as providências cabíveis”.
Uma das pessoas que fizeram a denúncia ao ministério afirmou que, na residência oficial, trabalhadores tinham que levantar os braços ao chegar, para serem “desinfetados” com álcool, e que Shirley ameaçava jogar soda cáustica em todos “porque fediam”. Uma prestadora de serviços diz ter presenciado cenas do tipo, inclusive com a embaixatriz declarando que “usaria a chibata” contra os funcionários.
Em eventos e na frente de pessoas com cargos importantes, porém, segundo esses relatos, Shirley afirmava adorar os guineenses. As ofensas passaram incólumes porque, como explica um funcionário da embaixada, as vítimas temiam apresentar denúncias, com medo de perderem o emprego.
Um auxiliar da residência oficial conta que pensou em pedir demissão após ser chamado de “lixo”. Ele diz ter ouvido de Shirley que os olhos dos guineenses estavam sempre vermelhos porque eles estão “cheios de malária” e que “não servem para trabalhar, só para fazer sexo”.
Segundo o servidor, o embaixador chegou a defendê-lo uma vez. A maioria dos entrevistados diz que Franco é cordial com os funcionários, mas aceita o comportamento da esposa. A reportagem ouviu apenas relatos de terceiros de problemas que o diplomata teria tido com a equipe.
Esta é a primeira vez que Franco assume um posto como embaixador. Ele entrou para a carreira diplomática em 1992 e foi aprovado para o cargo na Guiné-Bissau em novembro de 2018.
Antes, foi diretor comercial do Brasil em Taiwan. Em agosto, ele fez parte da comitiva da visita do presidente guineense, Umaro Sissoco Embaló, ao Brasil. Acusado de promover uma guinada autoritária em seu país, Embaló viajou a convite de Jair Bolsonaro, que costuma chamá-lo de “Bolsonaro da África”. Em 2020, o Brasil exportou US$ 3,4 milhões para a Guiné-Bissau e importou US$ 606 mil do país africano.
Segundo os relatos, depois que o marido assinou o TAC e foi convocado de volta, a embaixatriz não apareceu mais na sede da representação diplomática. Funcionários afirmam que foram comunicados informalmente de que o casal voltará ao Brasil em dezembro. Eles dizem, ainda, que no último domingo (7) Shirley fez uma festa de aniversário e despedida, sem mencionar o motivo da volta.