A minha preocupação com o novo coronavírus, surgido na China no final de 2019, começou durante uma viagem que fiz pela Europa na virada de ano. Desde o meu retorno ao Brasil, dia 19 de janeiro, passei a acompanhar diuturnamente os desdobramentos do surgimento e da expansão do novo coronavírus na China e mundo afora, especialmente no Brasil. Aqui, a presença da COVID-19, como passou a ser chamada a nova doença, ao mesmo tempo em que promoveu temor e pânico, contribuiu para o acirramento de disputas políticas e ideológicas, com a participação de políticos, lideranças sociais, cidadãos, jornalistas e meios de comunicação.
Quando estive em Milão, no norte da Itália, por três dias, pouco antes do Natal de 2019, onde loquei um carro para viajar por alguns países europeus, ainda não circulavam informações sobre as infecções respiratórias causadas pelo novo coronavírus. Somente em 31 de dezembro a organização Mundial da Saúde – OMS foi informada sobre casos de pneumonia no centro da China, em Wuhan, maior cidade da província de Hubei.
Ainda durante a viagem de carro, após a comemoração do ano novo, rumores sobre o novo coronavírus surgido na China começaram a circular na Europa, e, quando deixei o veículo de volta em Milão, no dia 09 de janeiro, as informações já eram mais concretas sobre o que ocorria em Wuhan, apesar dos filtros do governo chinês. Da Itália fui para Portugal e Espanha, para mais nove dias de viagem em outro automóvel, onde as informações estavam circulando e o medo das pessoas já era manifesto. A partir desses dias fui lendo e acompanhando os avanços da epidemia que veio a tornar uma grande pandemia e ameaçar a saúde das pessoas, bem como a economia de quase todo o planeta.
Nos primeiros meses da expansão da COVID-19 na China ficou clara tanto a tentativa do país em controlar e amenizar o problemas como em demonstrar para o mundo que a epidemia não provocaria danos à economia chinesa. A OMS embarcou nessa narrativa e chegou a elogiar as ações do governo chinês, antes de ser avisada que o atraso de semanas na comunicação da epidemia a OMS permitiu um consequente atraso nas medidas de proteção de outros países, especialmente os europeus. Especialistas apontam que se o surto tivesse sido comunicado a OMS com algumas semanas de antecedência, logo após o surgimento em Wuhan, diversos países teriam melhor se preparado e sofrido menos com a presença do coronavírus.
Em se tratando de uma doença nova, pensando nas proporções e velocidade da sua expansão, apesar do conhecimento anterior de outras infecções respiratórias causadas pela MERS e SARS, surgidas respectivamente na Arábia Saudita (2012) e na China (2002), com menores poderes de disseminação e de mortalidade, os enfrentamentos à COVID-19 foram orientados pela experiência chinesa, com o aval da OMS.
Em função de fatores da organização social e política da China, com fartos relatos de controle extremado das liberdades individuais e das práticas dos cidadãos, percebeu-se que por meio de forte isolamento social (lockdown) e fechamento de fronteiras nos limites de Wuhan, houve um controle da expansão do novo coronavírus por outras cidades e regiões da China, apesar da constate dúvida sobre o número exato de mortes por lá.
Entretanto, o trânsito de pessoas da China, inclusive de Wuhan, para outras partes do mundo, especialmente para a Europa e os Estados Unidos da América, continuou livre por meses, antes da COVID-19 ter sido caracterizada pela OMS como pandemia, em 11 de março de 2020. Hoje, são levantadas hipóteses de que o SARS-CoV-2, causador da COVID-19, já estava circulando fora da China bem antes dos primeiros casos serem notificados, como no Brasil, que teve a primeira notificação em 26 de fevereiro de 2020, mas outros casos de infecção foram atribuídos recentemente a datas anteriores.
Seguindo a risca orientações da OMS, a partir da experiência chinesa, a Itália, a Espanha, a França e os Estados Unidos embarcaram na prática do isolamento social, por vezes extremado, e obtiveram números alarmantes de infectados e mortos em curto prazo de tempo. Enquanto outros países como Suécia, Coréia do Sul, Islândia, Vietnã e Taiwan, registraram números menores de mortos e mais elevados de imunização da população, por meio de distanciamento social, controle de pessoas infectadas e rastreamento de contatos, uso de máscaras, isolamento de grupos de risco e outras práticas simples. O Reino Unido que inicialmente optou por não fazer isolamento pesado e depois acabou adotando a prática também atingiu um número elevado de mortes.
Bom seria a certeza que as orientações recebidas fossem tão somente para perdas menores com a pandemia, de vidas e econômicas. No entanto, a cada dia, percebem-se muitos interesses por trás dessas indicações e os ‘erros’ acabam ganhando contornos macabros de indução. Resta a contabilização de perdas e ganhos no passar dos dias para se ter as somatórias finais e um melhor entendimento de tudo.
Por meses a fio, a máxima entre ‘especialistas’ e a mídia era que o isolamento social consistia na principal arma de proteção à COVID-19, e o Brasil embarcou de cabeça nessa quase determinação internacional, com respaldo da OMS. Por aqui, quem ousou apontar que existiam outras possibilidades de enfrentamento, demonstradas por meio de experiências mais eficientes, foi duramente criticado pelos meios de comunicação, especialistas e muitos gestores públicos. Passando o tempo, cada vez mais tem ficado claro que o isolamento além de não diminuir a infecção, causa diversos outros problemas, mais óbitos, e uma ruína nas economias, com forte possibilidade de danos maiores que os causados pela COVID-19, inclusive mortes, a médio e longo prazos.
Mesmo alguns especialistas, na contramão da máxima dominante, salientando que o isolamento extremo não iria evitar as infecções, e até elevá-las, em função dos ambientes fechados dos lares e a constante infecção de pessoas que saiam das casas para trabalhar ou fazer compras, muitos países optaram por apostar muitas cartas nessa medida, inclusive o Brasil.
Há alguns dias o prefeito de Nova Iorque apresentou dados indicativos de que 66% das pessoas que precisaram de atendimento hospitalar na cidade em decorrência da COVID-19 estavam isoladas em casa, sem contatos diretos com as ruas. Junto com esse retrato da realidade nova-iorquina estão surgindo estudos e defesas de que o isolamento geral ou o lockdown não são efetivos para o combate ao coronavírus, além de provocar danos à economia, por meio da paralisação de grande parte das atividades comerciais. Apesar disso, alguns estados e cidades brasileiras estão intensificando o isolamento, apesar de não terem, na prática, efeitos eficientes na diminuição da infecção e das mortes.
Dentre outros casos de sucesso no enfrentamento da COVID-19, o Vietnã é um caso emblemático. Com 314 registros confirmados de infecção até o dia 16 de maio de 2020, não ocorreu nenhuma morte. O país enfrentou a pandemia com medias de baixo custo, como controle e isolamento de pessoas infectadas, sendo a maioria composta de pessoas que voltaram ao país de outras regiões, identificação e rastreamento de contatos dos infectados, além de ações de prevenção de um sistema médico eficiente, com a vacinação de crianças em dia, e profissionais capacitados técnica e academicamente, além de valores holísticos voltados para a medicina preventiva.
Não só no Brasil, como em diversos outros países, o enfrentamento da pandemia ganhou contornos políticos e ideológicos, o que dificultou acertos nas ações e provocou erros generalizados. Vivenciamos a luta entre um governo central, desautorizado pela corte superior de justiça em estabelecer políticas gerais de enfrentamento, e muitos governos estaduais e municipais, por vezes em função de divergências político-ideológicas, mas também em função de interesses econômicos, em decorrência de volumosos repasses de verbas públicas. Não bastante, ainda estamos diante de diversas denúncias de irregularidade em contratações e compras de materiais e suprimentos.
Hoje, vivemos impasses no Brasil. Enquanto o Governo Federal busca convencer estados e municípios a liberarem a reabertura das atividades comerciais, alguns estados e municípios, inclusive sem números elevados de casos e mortes, preferem endurecer os isolamentos e mesmo estabelecer lockdown, fechando os olhos para realidades mundo a fora e estudos que demonstram a ineficiência dessa medida. Muitos casos estão sendo judicializados, o que atrasa o processo de reabertura das atividades. No entanto, a única certeza é que quanto mais tempo as atividades econômicas ficarem paralisadas, pior será a recuperação das perdas com a pandemia, podendo a economia brasileira, que já vinha em processo de recuperação, colapsar a qualquer momento.
A questão da barata cloroquina ou hidroxicloroquina como medicamento para combater ou minimizar os efeitos da COVID-19 merece um artigo a parte. Enquanto isso, precisamos ter em mente que as disputas político-ideológicas no Brasil sobre o tema, com forte participação de jornalistas e da grande mídia, que se colocaram contrários à liberação do uso, inclusive distorcendo fatos e informações, pode ter causado a morte de milhares de pessoas. Quem vai levar o peso na consciência? Ou até ser responsabilizado por tamanha falha com o povo? Mas a corrida contra o relógio é o desafio dos grandes laboratórios, por um medicamento curativo ou uma vacina que combate, de custos elevados, claro.
Diante do cenário nacional e internacional em torno da COVID-19, foram surgindo reflexões e questionamentos na minha mente, de sociólogo e jornalista, por vezes inquietantes. No caso brasileiro, em que o isolamento é parcial, houve grandes infecções de pessoas que continuaram atuando em setores ativos da economia?
Por que ainda não foram feitos levantamentos entre os funcionários de setores ativos da economia, como supermercados, farmácias, postos de combustíveis, limpeza urbana, polícias, dentre outros, para saber o número de infectados e mortos pelo novo coronavírus?
O resultado de levantamentos com essas abordagens nos traria importantes elementos para a abertura segura das atividades. Se os funcionários de setores que estão em atividade não foram infectados nem mortos, ou se apenas poucos funcionários foram infectados, isso significaria que as medidas de proteção, como máscaras, distanciamento social e álcool gel, por exemplo, são eficientes.
Como os primeiros casos no Brasil foram notificados tardiamente, apesar de relatos de que o vírus já circulava por aqui antes do Carnaval, por que pouco se cogitou enfrentar a pandemia por meio de isolamento de grupos de risco e práticas de higiene e distanciamento social, inclusive o uso de máscaras? Medidas de baixo custo.
Sabendo que o uso de máscaras é eficiente, como já está sendo obrigatório em muitos estados e cidades nesse momento, por que essa medida barata não foi adotada desde o início da pandemia? A desculpa que o brasileiro não usaria é leviana, basta ver a elevada adesão ao uso de máscaras nos últimos dias. A falta de máscaras fabricadas na China não pode ser outra desculpa, na medida que além das pessoas estarem fabricando as suas próprias máscaras, pipocaram industrias e fabricas de fundo de quintal produzindo e customizando o artefato de proteção.
Teria o Brasil optado por enfrentar a COVID-19 por meio de maneiras com custos mais elevados? Por quê? A distribuição de ajuda aos estados e municípios pelo Governo Federal faz parte das disputas políticas? Sabe-se que o isolamento social requer ajudas governamentais, seria esse o principal motivo do seu amplo estabelecimento?
Por que enquanto dados do Datasus/MS (2018) indicam elevação de óbitos por pneumonia e gripe nos meses de maio a julho, pico dos casos, os dados do Portal de Transparência do Registro Civil indicam redução nos óbitos em função de pneumonia e síndrome respiratória aguda, de janeiro a maio de 2020, enquanto o número de óbitos por coronavírus se eleva no mesmo período?
Qual o motivo de cidades grandes como São Paulo e Rio de Janeiro, assim como Milão, Madri e Nova Iorque, terem número de casos e mortes tão elevados, em detrimento de outras cidades com uma população também considerável como Belo Horizonte, Brasília, Salvador, por exemplo? Enquanto outros estados com populações menores também foram duramente atingidos pela COVID 19, como Amazonas, Maranhão e Amapá, por exemplo.
Parte dessas respostas virá à tona com o passar do tempo, e principalmente após os ânimos dos discordantes políticos se acalmarem. Investigações científicas e práticas tornam-se urgentes.
O certo é que tanto o jornalismo como a ciência no Brasil têm se deixado influenciar pelas disputas políticas e ideológicas, além dos políticos, como já era possível imaginar. Assim, muitas pautas e temas não têm sido abordados e pesquisados, nem práticas eficientes e com baixo custo foram adotadas em momentos certos. Quem ganha e quem perde com isso? Quando o bem estar do povo será colocado em primeiro plano?
Por dias menos sombrios!
Marcílio Souza é sociólogo e jornalista, mestre e doutor em comunicação.