Rodrigo Craveiro
Poucos são os casamentos que chegam ao fim sem turbulências. Não foi diferente para a relação de 45 anos entre o Reino Unido e a União Europeia (UE). No último dia 30, os líderes dos 27 países-membros do bloco assinaram o acordo pós-Brexit, documento que rege as relações comerciais entre ambas as partes. A partir de hoje, os britânicos abandonam definitivamente o mercado comum e a união alfandegária da UE.
Para especialistas consultados pelo Correio, o pacto exigiu mais concessões de Londres do que de Bruxelas, expôs os britânicos a ameaças de segurança interna (como o terrorismo e o crime organizado) e pode inspirar a Escócia a separar-se do Reino Unido. Eles divergem sobre o risco de uma onda secessionista na União Europeia. Com o divórcio consolidado, o Reino Unido dirá adeus ao programa de intercâmbio universitário Erasmus, que possibilitava a 150 mil estudantes europeus cursarem em centros de ensino superior britânico.
O premiê Boris Johnson celebrou o acordo pós-Brexit como um presente de Natal — o anúncio foi feito em 24 de dezembro. “Aqui está: notícias satisfatórias. Isto é um acordo, um acordo para aportar segurança às empresas, aos viajantes e a todos os investidores do país a partir de 1º de janeiro, um acordo com nossos amigos e sócios da União Europeia”, declarou o primeiro-ministro.
Professor emérito da Universidade de Buckingham (Reino Unido), Anthony Glees admite que o pacto foi um compromisso, apesar de os resultados serem aquém da expectativa. “Não podemos nos esquecer que tanto Boris Johnson quanto David Frost (negociador britânico para o Brexit) exigiam um mingau muito ralo, não um goulash”, ironizou, ao citar uma sopa feita com carne de vaca picada, de grossa consistência.
“Por um lado, bens e produtos agroalimentares poderão continuar a serem exportados e importados, sem cotas e tarifas. Por outro lado, o Reino Unido nada exigiu em relação ao serviços, que representam 80% da economia interna”, lamentou Glees. Ele acredita que o acordo é bom para as transações comerciais entre a UE e o Reino Unido e lembra que os britânicos compram cinco vezes mais do bloco do que o contrário. “A União Europeia pode sair bem do Brexit, o Reino Unido bem menos”, advertiu.
Na opinião de Rob Dover, professor de inteligência e de segurança nacional pela Universidade de Leicester (Reino Unido), o acordo pós-Brexit é “uma espécie de pequeno milagre”, ante o relacionamento desgastado entre o governo britânico e a UE. “O acordo é pior do que o negociado pela ex-premiê Theresa May, e equivale ao que ocorre quando você flerta com um não acordo. No entanto, ele é melhor do que se nada tivesse sido firmado. O Reino Unido é livre para fazer o que deseja, mas, se fizer muito do que quer, terminará em um processo de arbitragem pré-definido”, comentou.
Populismo
Dover espera o surgimento de movimentos populistas nacionalistas em toda a Europa em um futuro previsível. Ele explicou que, como Trump perdeu a Casa Branca, o conjunto interconectado de movimentos isolacionistas ficou alijado de seu principal torcedor e da maquinaria dos Estados Unidos. “Se a União Europeia conseguir reencontrar seu propósito social e econômico durante a confusão causada pela pandemia da covid-19, eu prevejo novas deserções.”
Anthony Glees pensa diferente e não vê o perigo de uma onda de secessão. Ele acredita que os países europeus veem a confusão em que o Reino Unido se meteu. “Enquanto isso, as nações do bloco percebem que a União Europeia mantém-se forte e estável. Elas sabem que existem apenas três regimes regulatórios no mundo: a própria UE, os Estados Unidos e a China. Precisam escolher, e a escolha é óbvia. Se, em uma década, o Brexit for um sucesso, alguns desses países poderão repensar. Mas, buscar o livre comércio global, fora de um alinhamento regulatório, é como buscar o comunismo em 1989.”
Apesar de considerar que o acordo não foi ruim, o estudioso aposta que as empresas britânicas ficarão atoladas na burocracia, lamenta o fato de britânicos não mais poderem trabalhar na UE e culpa Johnson pela demora em negociar com seriedade. Ele admite que o risco de contágio da sanha secessionista para outros países da UE existe, ainda que pareça limitado. “Sem dúvida, há vozes belicosas e nacionalistas na Hungria, na Polônia, na Itália e na Grécia. No entato, acho que os poloneses são muito dependentes da UE para abandoná-la. Da mesma forma, a Itália e sua extrema-direita populista precisariam de algo inesperado para conseguirem a tração real para deixar o bloco”, disse Dover. “A Grécia baniu, efetivamente, os eurocéticos. A Hungria, por sua vez, tem mais probabilidades de ser expulsa por violar normas e regras de comportamento do bloco”, acrescentou.