Paulo Pinto – Embaixador do Brasil aposentado. Percursos diplomáticos diferenciados.
A comemoração dos cinquenta anos de estabelecimento de relações diplomáticas, entre a República Federativa do Brasil e a República Popular da China, vem sendo acompanhada por narrativas como: “Os dois países sempre se respeitaram, se trataram em pé de igualdade e cooperaram em prol de resultados ganha-ganha. Os números “5” e “0” misturam-se e cruzam-se para formar o símbolo de infinito (∞), representando que, embora a China e o Brasil estejam a milhares de quilômetros, estão intimamente ligados e que a amizade entre os dois países tem uma longa história, repleta de vitalidade e de perspectivas amplas”, conforme informou, em janeiro passado, comunicado da Embaixada da China em Brasília.
Lembro, no entanto, que, apenas em agosto de 1974, o Brasil transferiu sua Embaixada para a República Popular da China, fundada por Mao Zedong, em primeiro de outubro de 1949. Isto é, até 1974 mantínhamos o reconhecimento de “uma China”, com sede em Taipé. A “longa história de relações com a RPC” iniciou-se, portanto, 25 anos após sua fundação.
Peço vênia, a propósito, para sugerir exercícios de reflexão sobre: o significado da transferência da Embaixada do Brasil, de Taipé, para Pequim, em agosto de 1974; a “estratégia da parceria” com a República Popular da China; e a importância de dialogar com Pequim, transcendendo “critério cartográfico”, com a adoção de perspectiva de uma conversa entre “redes”, isto é, entre o “Cinturão de Rota das Sedas” e uma “trilha” a ser construída pelo Brasil, em cooperação com países da América do Sul e África Austral.
II
A transferência dos vínculos diplomáticos para Pequim ocorreu no mesmo ano em que nosso país reconheceu a independência de Angola, sob a orientação do então Chanceler Azeredo da Silveira e envolvimento direto do diplomata Ítalo Zappa, então Chefe do Departamento de Ásia e África do Itamaraty – responsável, portanto, por subsidiar ambas as decisões.
Tais desenvolvimentos representaram contradição com subserviências nossas a centros de decisões situados fora de Brasília, enquanto estava em curso a bipolaridade mundial. Isto é, os EUA só transferiram sua Embaixada de Taipé para Pequim, em 1979, e a antiga URSS (assim como Cuba) só reconheceram o MPLA, de orientação marxista, como legítimo representante da nação angolana, em momento posterior a nossa decisão sobre o assunto.
Cabe assinalar, ademais, que a providência de transferir a Embaixada brasileira para Pequim influenciou países na América Latina e África a tomarem a mesma decisão. Configurou-se, assim, um primeiro passo em nossa “estratégia de parceria” com a República Popular da China. A partir de então, passamos a manter apenas vínculos econômico-comerciais com Taiwan, recusando qualquer relação política com aquela ilha, onde exerci as funções de Diretor do Escritório Comercial em Taipé, entre 1998 e 2006, na condição de Conselheiro e Ministro de Segunda Classe, na “ativa”, da Carreira Diplomática.
A propósito, registra-se que, em 16 de maio de 1995, por Portaria do Ministério das Relações Exteriores do Brasil, foi criado o Escritório Comercial em Taipé, do Consulado-Geral do Brasil em Tóquio. Na ocasião, houve o “entendimento” (“guanxi”, em chinês) de que não haveria, na referida repartição brasileira, em Taipé, vinculada ao Consulado-Geral em Tóquio, qualquer ato oficial, pois relações oficiais só aconteceriam, a partir de 1974, com a República Popular da China. Não seria designado, ademais, Embaixador da ativa para a chefia do Escritório em Taipé, vinculado ao Consulado-Geral em Tóquio. Cada Diretor do Escritório seria nomeado por portaria ministerial. Não por decreto presidencial.
Nesse contexto, durante os oito anos e meio que servi naquela “província chinesa”: não enviávamos “notas” às autoridades formosinas, mas “cartas de cortesia”; todos os atos consulares contavam com o carimbo do CG em Tóquio; durante o período de 2001 a 2004 em que tratei do assunto do então menor brasileiro Iruan, retido por família taiwanesa, no Sul da ilha, não podia fazer valer naquele território sentenças da justiça brasileira favoráveis ao retorno do menino ao Rio Grande do Sul; até pedidos de sobrevoo de aeronaves brasileiras deveriam ser encaminhados a Pequim – que não os respondia, por ter sua autoridade restrita sobre o espaço aéreo de Taiwan. Não utilizávamos, em nossos automóveis, placa diplomática ou de Organismo Internacional.
Não seria admissível, nesse contexto, um decreto presidencial brasileiro, sobre qualquer assunto, que determinasse alguma providência quanto a Taiwan, pois, acreditava-se, então, que tal ato oficial seria interferência sobre a soberania chinesa com respeito à ilha de Formosa.
Cabe assinalar que o poderoso “American Institute” em Taipé era tradicionalmente chefiado por diplomata norte-americano aposentado ou temporariamente afastado do serviço ativo, sem portar passaporte diplomático ou de serviço. A mesma prática era adotada por outros escritórios de países europeus. Antes da portaria ministerial do Itamaraty que criou o Escritório Comercial em Taipé, vinculado ao Consulado-Geral em Tóquio, existiu, por alguns anos, sem caráter oficial, uma representação da Confederação Comercial do Brasil naquela cidade formosina, sob a chefia de um Embaixador aposentado e a participação de funcionários consulares do Ministério das Relações Exteriores. O vínculo era, então, com o Consulado-Geral em Hong Kong – enclave ainda britânico, devolvido à RPC em 1997.
Por ocasião de encontros ocasionais de cortesia, sempre me dirigi à principal autoridade local (“Presidente”) como “Sr”., sem empregar qualquer título. Mantive o “guanxi” com a Embaixada da China em Brasília, toda vez que fosse a nossa capital, para a troca de impressões sobre as negociações “através do Estreito de Taiwan”.
Acredito que a manutenção do “significado da transferência das relações oficiais de Taipé para Pequim”, mencionadas no primeiro parágrafo, deva ser pautado ainda pelas práticas relacionas acima, entre outras.
III
Em outro desenvolvimento, fui testemunha de um segundo passo que realizamos no sentido de uma “estratégia de parceria” com Pequim. Em junho de 1984, durante visita do Presidente João Batista Figueiredo à China, foram assinados importantes acordos que, enquanto beneficiaram ambas as partes, favoreceram a RPC no contexto da disputa que Pequim mantinha, então, com a antiga União Soviética, por liderança no “bloco socialista”, em momento que vigorava a “Guerra Fria”.
Pude acompanhar, como Segundo Secretário da Embaixada naquela capital, sob a Chefia do Embaixador Ítalo Zappa – já citado acima – a negociação para a assinatura de acordos: na área cultural; para a criação de Adidâncias Militares nas duas capitais; e o estabelecimento de consulados em São Paulo e Xangai. Cabe enfatizar que não concedíamos – no período do governo militar no Brasil – estas prerrogativas a país socialista algum, do “bloco soviético”. Mais uma vez, o exemplo foi seguido por países latino-americanos e africanos e tais providências foram passos adiante na nossa “estratégia de parceria” com a China.
Após a ida do último Presidente militar brasileiro à RPC, foi assinado o acordo CBERS que é, como se sabe, um programa de cooperação tecnológica entre China e Brasil para a produção de uma série de satélite de observação da terra. Tive a oportunidade de, ainda em 1984, acompanhar a primeira missão brasileira, chefiada pelo Ministro Chefe do Estado Maior das Forças Armadas, responsável então pelo programa espacial brasileiro. Nos deslocamos à cidade de Xian, para conhecer o avanço chinês, no setor de “sensoriamento remoto” e foi verificado, a propósito, que, naquele momento, contávamos com tecnologia superior aos chineses.
Em seguida, fomos a Xangai, para visitar o setor de fabricação de foguetes de lançamento de satélites, no qual havia evidente superioridade chinesa. A parceria continuava a avançar, com a transferência de tecnologia brasileira, na área de sensoriamento remoto, e chinesa, na fabricação de foguetes e lançamento de satélites.
Em 1994, foi estabelecida a “parceria estratégica” entre Brasil e China, proposta pelo então Primeiro-Ministro Zhu Rongji, em visita ao Brasil. Na preparação de sua vinda a Brasília, tive o privilégio de estar em missão transitória na Embaixada em Pequim – a convite do Embaixador Roberto Abdenur, cuja competência profissional muito contribuiu para o sucesso da missão do dirigente chinês a nosso país.
Lembro, a propósito – conforme me traduziu um diplomata chinês – que a China cultiva “parcerias” com diferentes países. O conceito de “estratégica”, no idioma chinês, contudo, variaria de acordo com cada parceiro. No caso da parceria estratégica com a Rússia (herdeira da URSS) significaria “paz”. Quanto aos EUA, “competição”. No que diz respeito ao Brasil aquele conceito significaria “cooperação futura” – daí, talvez, a citação ao “infinito”, conforme citado no parágrafo inicial acima.
Essa breve recapitulação da evolução política da estratégia da parceria Brasil China – que não pretende ser exaustiva e omite os detalhes econômicos e comerciais – almeja, pretensiosamente, contribuir para a reflexão sobre uma futura “parceria para a prosperidade”, entre os dois países, de forma a criar vantagens mútuas (“win-win situations”), inclusive em projetos conjuntos a serem desenvolvidos na África e América Latina.
IV
Sabe-se que, em países daqueles continentes, uma vez incluídos em projetos da RPC de “cinturão e rota das sedas”, ouvem-se críticas frequentes a formas autoritárias e métodos de produção restritivos a trabalhadores chineses, com a exclusão de nacionais onde empresas da RPC se instalam. É citada, ademais, a concentração de lucros para os investidores orientais, enquanto os receptores adquirem dívidas excessivas.
Nessa perspectiva, poderia haver esforço para alinhar a “eficiência e necessidades chinesas de acesso a insumos para seu continuado crescimento econômico”, com a nossa capacidade de “promover o diálogo entre diferentes culturas”[1], bem como procurar soluções comuns para problemas compartilhados entre países em desenvolvimento, enquanto se busca a geração de benefícios mútuos.
Nesse sentido, inicialmente, no que diz respeito às relações com a China, caberia definição clara de nossos objetivos de inserção internacional, que não poderiam se resumir a “reagir” a propostas chinesas de “cinturão e rota das sedas”. Para a continuação de uma “estratégia da parceria”, cabe pensar, por exemplo, em uma “trilha” brasileira.
No momento, a China está expandindo seus interesses, em busca de acesso a recursos naturais e novos mercados na África e América Latina, onde, conforme mencionado acima, tem encontrado incentivos e resistências.
Daí, na perspectiva sugerida, a “soft power” brasileira, no sentido da facilidade de “negociação cultural” e a identificação de interesses compartilhados, com vistas à prosperidade de todas as partes, poderiam, gradativamente, vir a configurar mais uma vertente da “estratégia da parceria” que se pretende estabelecer entre o Brasil e a China.
O objetivo seria manter um fluxo de livre comércio e intercâmbio de ideias, facilitando a integração de mercados e a convivência entre diferentes formas de governança. Assim, a parceria sino-brasileira almejaria novos “networks” de integração de cooperação (“conectividade” para empregar o termo preferido por Pequim) entre os países a serem “conectados pelo cinturão e rota chineses” e por eventual “trilha” brasileira.[2]
Caberia, no entanto, introduzir conceito dinâmico, como o da “prosperidade compartilhada” para consolidar no Atlântico Sul uma região de paz, estabilidade, democracia e desenvolvimento. Esta parte do mundo se apresenta como uma imensa fonte de oportunidades, não apenas para o Brasil, mas para todos os países que o margeiam.
Nossa capacidade de transformar essas oportunidades em benefícios concretos depende da coordenação cada vez mais estreita com os demais países da região.
V
Nesse contexto, seria de grande importância para a “trilha” brasileira um “Corredor Bioceânico”, que ligasse áreas de produção agrícola no Brasil, por ferrovia, ao Porto de Chancay, no Peru. O investimento chinês, por exemplo, neste projeto teria especial valor, de forma a facilitar o escoamento de nossa produção de commodities, que é grande parte do comércio que temos com a China, bem como baratearia essa produção.
No outro lado do Atlântico, Angola e Moçambique avançam na direção de um desenvolvimento ancorado nos imensos recursos naturais de que dispõem. Em sua trajetória para a construção de uma sociedade urbano-industrial precisam integrar-se à região para desenvolver um espaço econômico, político, sociocultural, técnico-científico capaz de sustentar seus respectivos projetos nacionais. Tratar-se-ia de uma “avenida africana”, que poderia identificar possibilidades de cooperação sino-brasileira.
Nessa perspectiva um projeto de integração entre Angola e Moçambique através de complexa e moderna rede de infraestrutura (transportes, comunicação e energia), a sustentar os dois lados da África, é crucial para o desenvolvimento integrado destas economias do Sul Global.
Tal inciativa geraria um bloco político-econômico notável, pois se estabeleceria uma ligação do Atlântico com o Pacífico e o Índico, gerando a possibilidade de um “acesso tri oceânico” para o conjunto formado pelos países meridionais da América e da África.
O “símbolo do infinito” é um enunciado construtivo – mas, de longo e demorado prazo. Seria preferível a adoção de providências imediatas, sempre respeitando a soberania de cada participante, que fortalecessem uma “estratégia de parceria”, com menos retórica e mais projetos rumo à prosperidade tanto da “rota chinesa”, quanto de “trilha brasileira” e de uma “avenida africana”.
[1] Vide “Manifesto Antropófago”, de Oswald de Andrade, em 1928, que nos indica o caminho brasileiro de aceitar o que nos é estranho sem deixar de transformá-lo em algo mais próximo de nossa personalidade nacional.
[2] A propósito, em dezembro de 2010, o ex-Chanceler Celso Amorim concedeu entrevista à jornalista Susan Glasser, da revista Foreign Policy, com a pergunta inicial seguinte: “What is the big idea, as far as you see it, for Brazil’s role in the world? Some people have argued that Brazil is a negotiating power, or a symbol of the emerging world order. What is your view? Celso Amorim: I would say, of course it’s a negotiating power. But it would be very simplistic to think Brazil always looks for consensus’ sake. We also have a view of how things should be, and we tend to work in that direction. We struggle to have a world that is more democratic, that is to say, more countries are heard on the world scene – a world in which economic relations are more balanced and of course in which countries in different areas can talk to each other without prejudice.”