Se Brasil conseguiu manter escalada de preços em xeque desde os anos 1990, argentinos há décadas tem de lidar com inflação galopante e perda de poder aquisitivo
Por BBC
Vinte e cinco anos depois de o Brasil lançar o Plano Real e controlar a inflação, a Argentina continua lutando contra o aumento constante de preços.
No ano passado, o país registrou inflação de 47,6%, a mais alta em 27 anos – e cerca de dez vezes maior que a registrada no Brasil. A Argentina continua sendo um dos únicos países a ter inflação alta na região – além da Venezuela, que enfrenta uma hiperinflação.
Esse histórico persistente de inflação alta, desvalorização e crise acabou forjando o comportamento dos argentinos.
A escritora e jornalista argentina Cristina Noble conta que aprendeu com os pais a importância de guardar dinheiro para tempos de crise – e de inflação. Mas as incertezas argentinas acabaram levando-a a viver desconfiada em relação à economia do país e à real eficácia de poupar dinheiro nesse contexto.
“Quando eu tinha dez anos, meu pai depositou para mim o dinheiro da venda de um apartamento. Mas quando fiz 25 anos e fui sacar o dinheiro, só deu para comprar duas bicicletas”, lembra Noble à BBC News Brasil.
Por isso, ela disse ainda que o dinheiro argentino, o peso, foi perdendo tanto valor que não vê a possibilidade de passar para a neta a cultura de poupar. “O dinheiro ficou curto, desvalorizado, e ficou impossível ensiná-la a importância da poupança. Não sobra para poupar com inflação nas alturas”, disse.
Muitos daqueles que passaram por sucessivas crises guardaram (e ainda guardam, quando podem) o dinheiro também fora do sistema financeiro. Ou dizem pensar muito antes de gastar, por temer novas crises.
Passado e presente
Nos anos 1980, definido pelos especialistas como a “década perdida” na América Latina, a situação, com hiperinflações, era mais grave que agora no país. Não era incomum, por exemplo, receber o salário e correr para o supermercado para fazer a compra do mês.
A economista Elisabete Bacigalupo, da consultoria Abeceb, de Buenos Aires, cita quatro motivos possíveis para as dificuldades argentinas: alta do dólar, remarcação de preços, interferência no Banco Central e deficit público.
“Quando o dólar sobe, os argentinos que podem correm para comprar a moeda americana para poupar. E os comerciantes remarcam preços automaticamente. O dólar funciona como um termômetro de expectativas de como vai a economia aqui”, disse.
Ela afirmou ainda que o fato de o Banco Central não ter sido independente ao longo de anos, com os governantes dando palpites ou interferindo na emissão monetária, contribuiu para gerar inflação e incertezas.
A Argentina, explica, tem ainda uma economia frágil e com deficit (gasta mais do que possui), cenário que também não ajuda a acalmar a inflação.
Vitrinistas
No ano passado, quando o dólar registrou uma das primeiras fortes altas de 2018, era possível ver vitrinistas de várias lojas na Avenida Santa Fe, em Buenos Aires, remarcando os preços das mercadorias exposta nas lojas de roupas, por exemplo. O mesmo ocorreu em outros setores como alimentos.
O peso foi desvalorizado de dezembro de 2017 a dezembro de 2018, como lembra a economista da Abeceb, passando de cerca de 18 pesos para 38 pesos por dólar. “Foi uma das poucas vezes que não vimos o total da desvalorização sendo repassado integralmente para os preços”, disse a economista.
Alguns especialistas observam que a estabilidade econômica na Argentina está fortemente atrelada ao preço do dólar, que está estável, como nos últimos dias, na casa dos 38 pesos. Mas ainda assim, a inflação de 2019, que o governo espera que comece a cair em abril ou maio, terminaria o ano na casa dos 29% ou 30%, segundo várias consultorias econômicas.
O ano começou com aumentos em vários setores, incluindo os esperados ajustes para os serviços públicos, que tinham sido subsidiados durante os anos de kirchnerismo (2003-2015).
A Argentina já teve diversas tentativas de controlar os preços. Na década de 1990, durante a controversa conversibilidade, quando o peso era atrelado e tinha igual valor que o dólar, o país experimentou a deflação – o que também foi apontado pelos economistas como problemático, recessivo.
Pouco depois daquele período, o país viveu uma retumbante crise política, social e econômica, no final de 2001 e início de 2002. Nos anos seguintes, a inflação parecia modesta para os padrões locais. Mas em 2010, o índice já estava no patamar de 25%.
Segundo especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, a inflação oficial da Argentina começou a ser adulterada a partir de 2007, o que gerou uma forte crise no Instituto Nacional de Estatísticas e Censos (o Indec) e processos contra autoridades da época.
A inflação oficial na era Cristina Kirchner (2007-2015) foi de 140% e as consultorias econômicas que realizavam o índice chamado de ‘inflação Congresso’ – porque estavam proibidas de divulgar o dado, que era então apresentado por parlamentares -, a estimaram, porém, em mais de 400%, como informou o portal de noticias Infobae, de Buenos Aires.
Governo Macri
Economistas ouvidos pela BBC News Brasil afirmam que a inflação na era Macri foi alimentada principalmente pela desvalorização cambial de 2018. A inflação estava em torno dos 25%, como nos últimos anos do kircherismo, até que em 2018 com a crise internacional no câmbio, o peso argentino foi fortemente desvalorizado.
Esta desvalorização, como explica Elisabete Bacigalupo, da consultoria Abeceb, foi parcialmente repassada para os preços. O governo Macri afirma que recebeu uma economia com problemas como tarifas públicas subsidiadas e fez um programa de constantes aumentos (os chamados tarifaços) para acabar com os subsídios aos preços de luz, gás e transporte público, entre outros.
Os tarifaços acabaram também contribuindo para aumentar a inflação, concordam economistas. Macri começou o governo com um programa de combate à inflação que incluiu, como no Brasil, um sistema de metas de inflação.
Pouco tempo depois, o governo desistiu deste sistema ao perceber que as metas não seriam cumpridas. As previsões de inflação feitas pelo governo não foram cumpridas nos três primeiros anos do governo. No ano passado, com o terceiro presidente do Banco Central na era Macri, os juros foram elevados para cerca de 70% (agora, estão na casa dos 50%).
Na semana passada, o presidente Macri admitiu ter se excedido em seu “otimismo”, reconhecendo que reduzir a inflação será mais difícil do que pensava. A crise do câmbio e o deficit comercial, com uma baixa acentuada na safra agrícola causada por uma seca histórica, levaram o governo a pedir empréstimo de US$ 57 bilhões ao Fundo Monetário Internacional (FMI).
Para parte dos analistas, o empréstimo recorde foi suficiente para afastar o fantasma de que a Argentina não poderia pagar seus compromissos financeiros, como ocorreu em décadas passadas.
A crise atual, com queda de cerca de 2,5% da economia em 2018 e juros atuais em torno dos 50%, não é como a de 2001 – não houve pânico e corridas ao banco, por exemplo. Mas os ajustes salariais não acompanham o ritmo da inflação e as centrais sindicais criticam a perda de poder aquisitivo.
Estima-se que a perda salarial tenha sido de cerca de 10% em 2018, dependendo da categoria, índice que seria similar ao da crise de 2001-2002. Além disso, a possibilidade de comprar um imóvel financiado, que era uma das bandeiras do atual governo, tornou-se difícil com os juros e inflação atuais.
E muitos que tinham aderido ao programa oficial de financiamento de casas próprias agora protestam e declaram arrependimento porque a parcela subiu mais do que seu salário. O antigo hábito dos argentinos de comprar imóvel (ladrillo, tijolo, como eles dizem) para se prevenir contra a inflação ficou muito mais difícil.
Academia em casa
Para tentar driblar os efeitos da inflação, argentinos de diferentes idades e classes mudaram seus hábitos para se adaptar aos preços altos. E, em muitos casos, confirmaram a fama de que são treinados em economia – e câmbio.
No ano passado, a decoradora de móveis Magdalena Kraft, de 37 anos, mãe de dois filhos, decidiu suspender as aulas de ginástica na academia e passou a malhar em casa.
No supermercado, ela procura os produtos com a etiqueta ‘Precios cuidados’ (Preços cuidados), que é um acordo entre o governo e empresários para o controle de preços de determinados produtos, para algumas marcas em tempos de inflação galopante.
“Cortei tudo o que pude. Viver com inflação alta é uma batalha diária”, contou Magdalena à BBC News Brasil, enquanto fazia compras de frutas e verduras em uma feira livre do bairro Palermo, em Buenos Aires.
“A gente acostuma a apertar daqui e dali, a mudar os planos por causa da inflação e vai levando”, disse o taxista Marcelo Martínez, de 57 anos.
Férias domésticas
O jeito, para muitos, tem sido de economizar até nas férias. Neste verão, Cristina Noble e o marido tomaram conta da casa de uma sobrinha com piscina em Buenos Aires e assim evitaram gastos de uma viagem. “Muitas coisas vão mudando em função da inflação e da desvalorização da nossa moeda”, disse.
A vendedora Anabella Quintana, de 45 anos, costumava passar as férias em Arraial do Cabo, no Rio de Janeiro, mas neste verão a opção foi Bariloche, no sul do país, por causa dos preços. Enquanto conta sua situação, ela cita cálculos automáticos e o câmbio do dia entre o real e o peso – intimidade com os números adquirida pelos argentinos ao longo das crises.
Ela vende produtos de perfumaria para lojas da cidade e contou que muitos revendedores optam por estocar, prevenindo-se contra possíveis novos aumentos. “Cada um vai se adaptando como pode”, disse ela, mãe de dois filhos.
Os empresários, principalmente do varejo, reclamam do que chamam da pior crise em décadas, com forte queda nas vendas, no ano passado.
No último dia 7, o presidente argentino, Mauricio Macri, disse que foi “otimista demais” ao achar que a inflação seria combatida mais rapidamente. E ele novamente culpou a herança recebida do kirchnerismo.
Os argentinos irão às urnas em outubro para votar para presidente, e a inflação deve ser decisiva na hora do voto.