Publicado por Flávia Abud Luz
Inspiração para as demais regiões do globo no que tange aos seus esforços de integração, a União Européia se constituiu, ao longo das décadas, como um paradigma de sucesso para o desenvolvimento e implementação de um projeto regional. Nos últimos anos, o projeto europeu tem vivido uma fase crítica, em que questões de natureza diversa, tais como a crise da dívida pública de países como a Grécia que além de enfraquecerem o Estado colocam em cheque as rígidas regras para a adesão à União Européia; a postura austera da Alemanha; o fortalecimento de partidos políticos que questionam a austeridade; e a atual crise dos refugiados advindos de regiões do Oriente Médio e Norte da África.
O desenvolvimento e fortalecimento de organizações ou arranjos de caráter regional não é um fato novo nas Relações Internacionais, sobretudo se observamos o período posterior à Segunda Guerra Mundial – momento em que a Europa iniciou e deu continuidade ao seu projeto de integração regional sob o signo da Comunidade Econômica do Carvão e do Aço (CECA), em 1951, e a Comunidade Econômica Européia (CEE) – e, a “onda mais recente”, fruto do fim da Guerra Fria, em que o mundo foi espectador do aprofundamento da integração européia e das aspirações de países periféricos em desenvolver um regionalismo que trouxesse vantagens de cunho econômico, como é o caso do ASEAN, União Africana (UA) e Mercosul.
Um modelo em construção: breve histórico e interpretações
O surgimento do projeto europeu de integração esteve baseado em aspectos advindos da corrente de pensamento liberal (sobretudo o Funcionalismo, como será apresentado mais a frente), que acreditava que os processos de interação entre os Estados no sistema internacional assumissem uma atmosfera de cooperação voltada à manutenção da paz e segurança internacionais, fato que seria antecedido pela superação das rivalidades estatais que anteriormente deflagraram em duas guerras mundiais. Neste sentido, e em meio a um cenário regional ambíguo, marcado pelo início da Guerra Fria e a destruição de diversos países europeus que serviram de palco dos conflitos mundiais, a idéia recorrente de união dos países europeus ressurgiu com o propósito determinado para a cooperação entre os Estados era a construção de uma Europa pacífica, e a forma de alcançá-lo seria “aos poucos” sob o lema “peace by pieces”, ou seja, seria preciso iniciar e desenvolver a união através de áreas de interesse ou “funções/atividades antes ligadas apenas ao Estado” e menos politizadas, como foi o caso da questão energética – o carvão e o aço – no embrião da Comunidade Econômica do Carvão e do Aço (CECA), composta pelos países do Benelux (Bélgica, Países Baixos e Luxemburgo), França e Alemanha.
Na fase inicial deste projeto pioneiro, nomeadamente a década de 1950, foram determinantes para sua consolidação os seguintes fatores: a motivação e a vontade política de seus articuladores, sobretudo o chanceler alemão Konrad Adenauer e os políticos franceses Jean Monnet e Robert Schuman, que cunharam uma nova política, de caráter supranacional e comunitária, diferentemente da tradicional fórmula do balanço de poder; a determinação em compartilhar a soberania e construir instituições com valores comuns e base em leis internacionais para aprofundar a integração; e o suporte político dos Estados Unidos, sobretudo por conta da lógica de promover o desenvolvimento econômico da região e conter a influência política e militar da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS).
Ao longo das décadas a Comunidade Econômica Européia (CEE), instaurada pelo Tratado de Roma em 1957, deu continuidade ao seu processo de integração, sobretudo do ponto de vista econômico – ao desenvolver um mercado comum, com o objetivo de permitir a livre circulação de pessoas e fatores produtivos entre os Estados membros – e, do ponto de vista institucional, visto que a década de 1990 foi marcada pela efetivação do Tratado de Maastricht (1992), que trouxe (de forma mais clara), as bases para o estabelecimento de uma moeda comum (o Euro) e desenvolvimento de políticas externas e de segurança comuns, e “substituiu” a noção de comunidade européia para a de “União Européia”.
O desenvolvimento do corpo jurídico e constitucional da agora denominada União Européia norteou as interpretações de estudiosos/acadêmicos da integração regional, sendo que a referida organização passou a ser observada com entusiasmo para os demais grupos/arranjos regionais que buscavam superar as rivalidades (por razões/motivações diversas, tais como econômica) e avançar através dos “níveis de integração”.
Crise Econômica Mundial e os Pontos de Fragmentação do Projeto Europeu
A crise econômica que foi deflagrada no ano de 2008, inicialmente nos Estados Unidos e depois no mundo, expôs as contradições relacionadas às rígidas regras para a adesão à União Européia, bem como ao modelo de governança proposto por meio das instituições européias para lidar – de maneira comum – com os efeitos das instabilidades econômicas e financeiras de seus Estados membros. Desde o início da crise, instituições européias, tais como o Banco Central Europeu e a Comissão Européia, ampliaram seu poder junto aos governos nacionais de modo a garantir o desenvolvimento e a coordenação de planos de estabilidade financeira, sobretudo através de novas diretrizes para a governança macroeconômica, controle de dívidas e déficits públicos.
A Grécia, juntamente com Portugal e Espanha, foi um dos primeiros países que sofreu os efeitos negativos da crise em solo europeu e, desta forma serve como um importante exemplo das tendências mais recentes quanto ao questionamento do sucesso do projeto de integração europeu, sobretudo se tomarmos como base os seguintes aspectos: o questionamento das rígidas regras para adesão à União Européia, a existência de elevadas dívidas públicas ao longo da zona do euro e as dificuldades em desenvolver políticas macroeconômicas comuns e eficientes, ascensão de partidos populistas ou de pronunciado teor nacionalista, que possuem uma postura contrária às amarras advindas na União Européia e suas instituições.
Tendo em vista os aspectos econômicos da crise da dívida, os principais desafios da União Europeia estão relacionados à coordenação fiscal, sobretudo através de medidas de austeridade inseridas em diversos estados-membro, ações estas que além de demandarem tempo tem outro ingrediente importante: a solidariedade entre os seus membros.
Ao pensarmos na ascensão de partidos populistas ou de pronunciado teor nacionalista, ou que possuem uma postura contrária àquela revelada pela União Européia e suas instituições, é possível identificar outro desafio europeu: a questão da identidade. Um processo contrário àquele ideal desenvolvido por Ernest Haas– teórico do denominado neofuncionalismo em Teoria de Relações Internacionais – em que as identidades nacionais aos poucos “dividiriam” seu espaço com a supranacionalidade e o aspecto político seria preponderante para as relações entre os estados, o projeto europeu desenvolveu-se, conforme argumenta Scmitter (2010) como “uma Europa sem europeus”, ou seja, os aspectos da integração econômica avançaram de maneira substancial enquanto aqueles de ordem política foram pouco desenvolvidos.
Alguma conclusão em vista?
As crises vividas pelas Europa podem realmente afetar ou até mesmo “frear” o processo de integração europeu? Ou seriam estas boas opções para incitar o questionamento produtivo acerca do modelo atual e suas fraquezas? Analistas que se debruçaram sobre os aspectos desta temática divergem para responder tal questão. As discussões para responder essa questão que ronda a cabeça dos cidadãos europeus foram dominadas por economistas e especialistas em finanças que, por sua vez, discordam dos cientistas sociais, sobretudo no que diz respeito as origens dos problemas atuais e as possibilidades para resolvê-los.
Embora a resposta acerca da manutenção do modelo europeu seja difícil, é importante observar que a integração constitui um processo complexo, fato que inevitavelmente passará por questionamentos e até mesmo crises, e que no caso europeu – conforme analisou Scmitter (2010) em um instigante artigo, intitulado A experiência da integração européia e seu potencial para a integração regional ao discutir a atual crise de legitimidade política da Europa e desenvolver sua análise sobre as “doze lições” acerca do processo de integração europeu que podem servir de base para outras regiões e para a autocrítica européia – o histórico da União Européia demonstra que os momentos de crise vivenciados, sobretudo na década de 1970, foram importantes indutores de decisões em favor do aumento da integração ao passo em que os Estados nestes momentos de crise reforçaram sua boa vontade ou comprometimento com a integração. Neste sentido, nos cabe observarmos se desta vez os líderes europeus serão capazes manter a unidade (seja por auto-motivação ou por vontade genuína) e cuidar para que seu modelo de integração – o mais desenvolvido até agora – continue existindo.
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Can Europe maintain itself? Rise and crisis of European Union as a paradigm of regional integration
An inspiration for regions around the world with respect to their integration efforts, the European Union has been constructing itself during the decades as a paradigm of success to development and implementation of a regional project. In the last years the European project has lived a critical phase, in which questions of diverse nature, as de public debt crisis of countries as Greece that beyond weaken the State calls into question the strict rules for be a membership of European Union; Germany´s austere posture; strengthening of political parties who question the austerity ; and the current refugee crisis arising from regions from Middle East and North Africa.
The development and enforcement of regional organizations or arrangements is not new in international relations, especially if we look at the period right after the Second World War – moment when Europe began and continued its regional integration project under the sign of Economic Coal and Steel Community (ECSC) in 1951, the European Economic Community (EEC) – and ‘the latest wave’ of regionalism, related to the end of Cold War, in which the world saw the deepening of European integration and the aspirations of peripheral countries in develop kinds of regionalisms to bring economic benefits to them.
A Model under construction: brief history and interpretations
The emergence of european integration project was based on aspects of the liberal school of thought (over all Functionalism, as will be presented forward), who believed that integration process between sovereign state in international system assume a cooperation atmosphere aimed at maintaining international peace and security, a fact that should be preceded by overcoming state rivalries that previously triggered in two world wars. In this sense, and in the midst of a ambiguous regional scenario, marked by the beginning of the Cold War and the destruction of several European countries that served as the stage of world conflicts, the applicant idea of union of European countries rose again with a determinate purpose to the cooperation between states to built a pacific Europe, and the way to achieve it would be “gradually” under the slogan of “peace by pieces”, in other words, it would be necessary to start and develop the union areas of interest or “functions/activities previously linked to the state” and less politicized, as was the energy issue – coal and steel – the very beginning of the Economic Community of Coal and Steel (ECCS), consisting of the Benelux countries (Belgium, Netherlands and Luxemburg), France and Germany.
In the initial phase of this pioneering project, namely the 1950s, were instrumental in its consolidation the following factors: motivation and political will of its organizers, particularly German Chancellor Konrad Abnauer and French politicians Jean Monnet and Robert Schuman, who coined a new policy, with a supranational and community character, unlike the traditional formula of the balance of power; the determination to share sovereignty and build institutions with shared values and based on international law to further integration; and the political support of United States, mainly because of the logic of promoting economic development of the region and contain the political and military influence of the Union of Soviet Socialist Republics (USSR).
Over the decades the European Economic Community (EEC), established by the Treaty of Rome in 1957, continued its process of integration, particularly from an economic point of view – to develop a common market, in order to allow the free movement of people and factors of production between member states, and from an institutional point of view, since the 1990s was marked by the realization of the Treaty of Maastricht (1992), which brought (more clearly), the foundation for the establishment of a common currency (the Euro) and development of a foreign policy and common security, and “replaced” the notion of European community for the “European Union”.
The development of the legal and constitutional body now called of the European Union guided the interpretation of scholars/ academics from regional integration, and the organization came to be seen with enthusiasm for the other groups and regional arrangements that sought to overcome their rivalries and advance (for different reasons or motivations, such as economic) and advance through the “levels of integration”.
World Economic Crisis and the European Project Fragmentation points
The Economic crisis that broke out in 2008, initially in the United States and then the world, exposed the contradictions related to the strict rules for membership of the European Union and the governance model proposed by the European institutions to address – in a common way – with the effects of economic and financial instability of its member states. Since the beginning of the crisis, European institutions such as the European Central Bank and the European Commission expanded their power with national governments to ensure the development and the coordination of financial stability plans, especially through new guidelines for macroeconomic governance, debt and public deficits control.
Greece, along with Portugal and Spain, was among the first countries that suffered the negative effects of the crisis on European soil and thus serves as an important example of the latest trends regarding the questioning of the success of the European integration project, especially if we take as a basis the following: the questioning of strict rules for membership of the European Union , the existence of high public debt over the eurozone and the difficulties related to the development of common and effective macroeconomic policies, the rise of populist parties or the ones with a pronounced national content, which have a contrary stance to the bonds in the European Union and its institutions.
In view of economic aspects of the debt crisis, the main challenges facing the European Union are related to fiscal coordination, especially through austerity measures inserted in several member states, actions such that in addition demands it long has another important ingredient: solidarity among its members.
When we think about the rise of populist parties or that ones with pronounced nationalist content, that may have a contrary position to that revealed by the European Union and its institutions, it is possible to identify other European challenge: the question of identity. A reverse process to that ideal developed by Ernst Haas – theorist of the called neofunctionalism in International Relations Theory – where national identities gradually divide your space with supranational and political aspect would be predominant for relations between states, the European project developed, as argued Scmitter (2010) as a “Europe without Europeans”, what means that the aspects of economic integration have advanced substantially while those of political nature were undeveloped.
Some conclusion in sight ?
The crisis experienced by Europe can really affect or even “slow down” the process of European integration? Or are these good choices for inciting productive questions about the current model and its weakness? Analysts who have studied aspects of this issue differ to answer this question. Discussions to answer this question that haunts the minds of European citizens have been dominated by economists and financial experts, who in turn disagree with social scientists, especially regarding the origins of the current problems, and even complicated, which are the possibilities to solve them.
Although the answer about the maintenance of the European model is difficult, it is important to note that integration is a complex process, a fact that inevitably will undergo questioning and even crisis, and in the European case – as analyzed Scmitter (2010) in an intriguing article entitle The Experience of European integration and its potential for regional integration, to discuss the current crisis of political legitimacy in Europe and developed its analysis of the “twelve lessons” about the European integration process that can provide the basis for other regions and European self-criticism – the history of the EU shows that the moments drives to important decisions in favor of increased integration while States in these times of crisis reinforced his willingness or commitment with integration. In this sense, it is up to observe if this time the European leaders will be able to maintain unity (whether by self-motivation or genuine desire) and see that its model of integration – the most developed so far – continue to exist.
Fonte: NEMRI – Núcleo de Estudos Multidisciplinar de Relações Internacionais