Rodrigo Craveiro
O berço da Primavera Árabe, um movimento revolucionário que confrontou e depôs ditaduras em nações do norte da África e do Oriente Médio, assiste à erosão da democracia, dez anos depois da destituição de Zine El Abidine Ben Ali. Após derrubar o primeiro-ministro, Hichem Mechichi, e suspender a Assembleia dos Representantes do Povo (Parlamento), o presidente da Tunísia, Kais Saied, demitiu os ministros da Defesa (Ibrahim Bartaji) e da Justiça (Hasna Ben Slimane) e impôs toque de recolher das 19h às 6h (das 15h às 2h pelo horário de Brasília) até 27 de agosto — tentativa de frear a covid-19. Também anunciou que assumirá o Poder Executivo “com a ajuda do governo”, o que lhe confere a prerrogativa de nomear ministros.
Simpatizantes do Movimento Ennahda, partido político islâmico que controlava o Parlamento, entraram em choque com defensores de Saied. Policiais invadiram o escritório da emissora de TV Al-Jazeera, do Catar, em Túnis, e expulsaram os jornalistas. Na noite de ontem, Mechichi rompeu o silêncio e admitiu disposição em entregar o cargo. “Garantirei a transferência de poderes ao dirigente que for nomeado pelo presidente da República”, declarou, ao explicar que não pretende ser um “elemento perturbador”.
Saied garante ter atuado de forma legítima, ao invocar o artigo 80 da Constituição, o qual tem aplicabilidade por 30 dias e é passível de ampliação da vigência. Segundo este artigo, “em caso de perigo iminente às instituições da nação e à segurança e à independência do país, capaz de prejudicar o funcionamento regular das autoridades públicas, o presidente da República pode tomar medidas exigidas por essa situação excepcional, depois de consultar o chefe de governo e o presidente da Assembleia dos Representantes do Povo e depois de informar o presidente da Corte Constitucional”. A polêmica está no fato de que o premiê não teria sido avisado.
A comunidade internacional reagiu com preocupação ante o que foi classificado por cientistas políticos como um “autogolpe”. Antony Blinken, secretário de Estado norte-americano, telefonou para o presidente tunisiano e o encorajou a “aderir aos princípios da democracia e dos direitos humanos, que são a base da governança na Tunísia”. “O secretário instou o presidente Saied a manter um diálogo aberto com todos os atores políticos e o povo tunisiano e observou que os EUA continuarão monitorando a situação”, afirma nota divulgada pela chancelaria de Washington. A França pediu “um retorno, o mais rápido possível, ao funcionamento normal das instituições”. Por sua vez, a Turquia, aliada do Movimento Ennahda, exigiu a recuperação da “legitimidade democrática”, e a Alemanha ordenou a “retomada da ordem constitucional o mais rápido possível”.
Discordâncias – Analista político baseado em Túnis, Mohamed-Dhia Hammami afirmou ao Correio que a remoção de autoridadades de seus postos e a concentração de poderes, por parte do presidente, representa um “autogolpe”. “Em relação à legalidade de suas recentes ações, vemos várias divergências por parte de especialistas em direito constitucional, que não veem a interpretação que Kais Saied fez do artigo 80 da Constituição como algo correto e adequado”, explicou. “Não está claro quais serão as próximas manobras política, pois o presidente retirou a imunidade dos parlamentares. Eu não me surpreenderia se políticos forem investigados por corrupção ou mesmo detidos.”
Hammami considera difícil fazer qualquer previsão sobre os desdobramentos da crise política nas próximas horas ou dias. “Uma tirania é algo sempre perigoso”, advertiu. “A situação aqui em Túnis é muito tensa. Essa é a melhor forma de descrever os últimos eventos. Há uma divisão entre os que foram às ruas para celebrar as decisões de Kas Saied e aqueles que apoiam o Movimento Ennahda. Aqueles que se opõem à manobra não reagiram publicamente.”
Antes de Saied destituir Mechichi e congelar o Parlamento, no domingo, protestos irromperam na Tunísia por conta da crise econômica agravada pela pandemia da covid-19. De acordo com Hammami, o padrão de vida dos tunisianos deteriorou- se nos últimos anos, principalmente por causa da política econômica encampada pelos governos e apoiada pelas instituições financeiras internacionais e pela União Europeia. “As decisões do presidente alvejaram os escritórios do Movimento Ennahda, visto como o responsável pela situação político-econômica”, disse o especialista.