“É hora de pôr fim à mais longa guerra da América. É hora de as tropas americanas retornarem para casa”, Joe Biden, presidente dos Estados Unidos, antes de visitar túmulos de soldados dos EUA no Cemitério Nacional de Arlington – (crédito: Brendan Smialowski/AFP)
Rodrigo Craveiro
Uso obrigatório de burca, execuções em praça pública, um rígido código de moral e de costumes, o fundamentalismo religioso no controle da a sociedade. Entre 1996 e 2001, o Afeganistão viveu sob o domínio de um regime islâmico draconiano imposto pela milícia Talibã, interrompido pela ocupação militar liderada pelos Estados Unidos em retaliação aos atentados de 11 de setembro. A decisão do presidente norte-americano, Joe Biden, de retirar todas as tropas do Afeganistão até a data do 20º aniversário dos ataques terroristas acendeu o alerta sobre um futuro sombrio para o país. Em entrevista ao Correio, o Talibã afirmou que pretende instalar um “governo central forte” no Afeganistão e expulsar as tropas estrangeiras, caso não abandonem a nação antes de 1º de maio.
Por meio do WhatsApp, Zabihullah Mujahid, porta-voz do Talibã, classificou como “ilegal” e “invasiva” a presença de tropas norte-americanas no Afeganistão e ameaçou intensificar a “luta pela libertação”. “Nossa história provou que sempre expulsamos as forças ocupantes de nosso país. Com a cooperação de nosso povo, podemos libertar a nação da ocupação estrangeira. Com a vontade de Deus”, afirmou ao Correio. Fontes consultadas pela reportagem alertaram sobre o despreparo das forças afegãs e sobre o risco de o Afeganistão reviver um califado islâmico.
Na Sala Roosevelt da Casa Branca — local em que o ex-presidente George W. Bush anunciou os bombardeios aos campos de treinamento da rede Al-Qaeda, em 7 de outubro 2001 —, Biden afirmou que os EUA cumpriram com o seu objetivo. “Apenas os afegãos têm o direito e a responsabilidade de comandarem o seu país”, disse. “Eu acreditava que nossa presença no Afeganistão deveria focar-se em garantir que o país não fosse usado como base para atacarem novamente a nossa pátria. Nós o fizemos. Cumprimos com aquele objetivo. (…) Sou o quarto presidente dos EUA a governar sobre a presença de tropas americanas no Afeganistão. (…) Não passarei esta responsabilidade a um quinto (presidente).”
De acordo com Biden, os EUA começarão a retirada final do Afeganistão em 1º de maio. “Não precipitaremos a saída. Faremos isso de forma responsável, deliberada e segura. E o faremos em plena coordenação com nossos aliados e parceiros”, disse o democrata. “É hora de pôr fim a mais longa guerra da América. É hora de as tropas americanas retornarem para casa.”
O presidente enviou um recado à milícia fundamentalista. “O Talibã deve saber que, se nos atacarem quando nos afastarmos, defenderemos a nós mesmos e a nossos parceiros com todas as ferramentas à nossa disposição”, advertiu. “Nosso plano há muito tempo tem sido o de ‘entramos juntos, sairemos juntos’. As tropas dos EUA, bem como as forças deslocadas por nossos aliados da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) e por parceiros operacionais, estarão fora do Afeganistão antes de marcarmos o 20º aniversário daquele ataque hediondo em 11 de setembro.” Os países da Otan acordaram a iniciar a remoção de suas forças em 1º de maio. À tarde, Biden visitou o Cemitério Nacional de Arlington e caminhou por entre os túmulos de soldados mortos em combate no Afeganistão.
Pouco antes do pronunciamento, Biden conversou por telefone com o presidente afegão, Ashraf Ghani.
Em nota à imprensa, a Casa Branca informou que ambos debateram o “compromisso contínuo com uma forte parceria bilateral após a partida das tropas”. Biden prometeu manter o apoio ao povo do Afeganistão, por meio de assistência à segurança, humanitária e em desenvolvimento.
Para Najibullah Lafraie, ministro das Relações Exteriores do Afeganistão entre 1992 e 1996, as tropas afegãs não estão prontas para fornecer proteção total ao governo de Cabul sem apoio estrangeiro. “Além disso, a recente retórica dura do Talibã pode indicar que a milícia não ficará feliz com nada que não seja o restabelecimento do califado islâmico. Não podemos descartar isso como um objetivo. Também existe a possibilidade de o Talibã ter adotado esse discurso devido à oposição estrita demonstrada por Ghani. Tenho esperança de que o grupo também tenha aprendida com o passado”, disse ao Correio.
Thomas Johnson, diretor do Programa para Estudos de Cultura e Conflito da Escola Naval de Pós-Graduação, em Monterey (Califórnia), lembrou à reportagem que o objetivo principal do Talibã sempre foi a remoção de todas as forças estrangeiras. “Em parte, porque eles sabem, corretamente, que suas façanhas militares são significativamente maiores do que as das forças afegãs. Isso é basicamente uma reedição do Vietnã. O Talibã retornará a Cabul em 30 de setembro de setembro ou pouco depois. A única maneira de o governo Ghani perdurar envolve os EUA usarem o seu poderia aéreo para deter o Talibã. No entanto, eventualmente, o Talibã controlará o país”, advertiu.
Sob a condição de anonimato, um oficial aposentado do Exército dos Estados Unidos previu que o Talibã “tomará todo o país em poucos anos”. “Seria um retorno ao status pré-2001, talvez com um pouco mais de liberdades do que antes, pois as populações das grandescidades foram expostas a valores ocidentais”, comentou. Johnson teme uma “longa e prolongada guerra civil no Afeganistão”. “Caso contrário, o Talibã formará um novo governo e praticamente não será desafiado. A única certeza é a de que o atual governo tem poucas chances de sobrevivência.”
» Eu acho…
“As tropas norte-americanas precisam abandonar o Afeganistão mais cedo ou mais tarde. Duas décadas são mais do que suficientes. Elas não podem permanecer para sempre. Ainda estou cético em relação à retirada. Claro que existe o risco de outra ‘guerra civil’. Tomara que haja tempo o bastante para que os líderes afegãos aprendam com o passado e cheguem a algum tipo de entendimento para evitar isso.” Najibullah Lafraie, ministro das Relações Exteriores do Afeganistão entre 1992 e 1996.
“O Talibã tem sido bastante aberto em relação ao fato de que instalarão um novo Emirado Islâmico do Afeganistão e que destruirão a atual República Islâmica do Afeganistão e sua Constituição. Eles estão bem posicionados para atacar as principais cidades e começarão a fazê-lo em breve, logo depois da retirada dos soldados dos EUA e da Otan.” Thomas Johnson, professor e diretor do Programa para
Estudos de Cultura e Conflito da Escola Naval de Pós-Graduação, em Monterey (Califórnia).
» Três perguntas para
Zabihullah Mujahid, porta-voz do Talibã
Como o Talibã recebeu o anúncio de que os Estados Unidos e a Otan vão retirar todas as tropas do Afeganistão até 11 de setembro?
Para nós, é importante que o Acordo de Doha preveja a retirada de todas as tropas estrangeiras do Afeganistão até 1º de maio. Caso contrário, teremos que usar meios militares para libertar o nosso país.
Quais garantias vocês dão de que respeitarão plenamente a paz e a estabilidade no Afeganistão?
O Afeganistão é o nosso país. Assim como qualquer outro cidadão do mundo, nós desejamos a paz e a segurança em nosso país. Também almejamos a paz e a estabilidade total. Para isso, lutamos por duas décadas. O próprio Afeganistão deve garantir a segurança. Mas esta é a nossa esperança básica.
Qual papel o Talibã espera desempenhar antes da saída das tropas estrangeiras?
Nós temos um papel central na política e na segurança do Afeganistão. Há 20 anos lutamos pela independência de nossa nação. Vamos intensificar a nossa luta para libertar o nosso país da ocupação estrangeira. Também construiremos um governo central forte no Afeganistão e fortaleceremos o nosso sistema de segurança. Se Deus quiser.
2.400
Total de soldados norte-americanos mortos no Afeganistão em duas décadas de combates.