Nascido em Assunção para criar um mercado comum que dinamizasse o comércio e desse força aos sócios para negociar em bloco, o Mercosul não conseguiu acordos importantes com grandes centros consumidores mundiais.
O árduo acordo negociado com a União Europeia há mais de duas décadas está paralisado por questionamentos sobre a falta de uma política ambiental no Brasil de Jair Bolsonaro, onde o desmatamento dispara. E continua a enfrentar a relutância dos agricultores europeus frente a uma agricultura mercosuliana muito mais competitiva.
A tarifa externa comum está “perfurada”, cheia de exceções, a tal ponto que um dos signatários do Tratado de Assunção, o ex-presidente uruguaio Luis Alberto Lacalle Herrera, disse à AFP que o Mercosul “não foi constituído”. Mercosul está preparado para o mundo pós-pandemia? “Definitivamente não”, responde o diretor do Instituto de Negócios Internacionais da Universidade Católica do Uruguai, Ignacio Bartesaghi.
“Hoje existe um Mercosul sem liderança, sem diálogo entre suas duas principais economias”, que são Brasil e Argentina. Em um mundo pós-pandemia em que haverá “novas relações com os Estados Unidos e a China”, o Mercosul nem chegou a “um consenso básico”, diz Bartesaghi. “A pandemia não é exceção. Não houve compras conjuntas de vacinas. (…) Não houve critérios comuns de como enfrentá-la”, exemplificou.
O brasileiro Thomaz Favaro, diretor da consultoria Control Risks para o Brasil e o Cone Sul, concorda. “O Mercosul não está preparado para o mundo pós-pandemia. Ainda não resolveu a questão fundamental, que é servir de veículo de integração econômica, e não vai resolver tão cedo”. É “muito improvável imaginar que o bloco possa ter uma posição comum para negociar em um futuro próximo”, acrescentou.
“O Mercosul nunca foi um bloco com um nível de coesão, com consenso mínimo para poder discutir os grandes temas da agenda global”, resumiu Bartesaghi. Segundo os analistas, a falta de um “órgão supranacional” que possibilitasse uma integração acima dos interesses nacionais, como ocorre na Europa, e a impossibilidade de abrir mão da soberania em benefício do bloco, explicam a falta de progresso.
Acordo com a UE Em 2019, o Mercosul, com um PIB combinado de US$ 2,4 trilhões, e a UE, com quase US$ 14 trilhões, anunciaram um acordo comercial após duas décadas de negociações. O pacto deveria ainda passar por aprovação parlamentar. No entanto, o que foi visto como um sucesso hoje está ameaçado pelo avanço do desmatamento no Brasil.
A tensão entre a maior economia do Mercosul, com 212 milhões de habitantes, e a UE, atingiu o clímax em janeiro, quando Bolsonaro acusou seu homólogo francês, Emmanuel Macron, de falar “besteira” ao afirmar que a dependência da Europa da soja brasileira sustenta o desmatamento na Amazônia. “Quando importamos soja produzida na devastada floresta tropical do Brasil, não somos coerentes com nós mesmos”, disse Macron.
O vice-presidente brasileiro, Hamilton Mourão, respondeu que essas declarações refletiam “os interesses protecionistas dos agricultores franceses”. Para “os países mais protecionistas ou os que mais se opõem a avançar nas questões agrícolas, a questão ambiental é muito útil para bloquear [o acordo]. Mas isso não significa que a questão ambiental não esteja” presente na sensibilidade dos europeus, argumentou Bartesaghi.
O acordo “será concluído mais cedo ou mais tarde”, avaliou o especialista. “Bolsonaro, ou quem vier depois, terá que assumir compromissos adicionais sobre questões ambientais”, concluiu. Favaro não espera avanços no curto prazo com a UE, não só por conta da Amazônia. “A questão do desmatamento talvez seja a mais saliente. Mas há outras preocupações, como a falta de apreço do governo Bolsonaro pelas organizações multilaterais, uma possível erosão da democracia no país… Tudo isso vai contribuir para que o acordo não avance no curto prazo”.
Futuro do Mercosul – Partindo de uma visão integracionista em um mundo em que se traçavam blocos comerciais, o Mercosul permitiu conter as rivalidades entre Argentina e Brasil, e as negociações com os sócios para uma tarifa externa comum reduziram o protecionismo de duas grandes economias regionais. A circulação de trabalhadores entre os países melhorou, e alguns setores se beneficiaram de facilidades para exportar e importar.
Três décadas depois, sem grandes conquistas comuns – “praticamente não conseguiram parceiros comerciais dispostos a conversar”, segundo Favaro – para alguns membros – com o Uruguai à frente apoiado pelo Paraguai -, a “flexibilização” é a principal questão na mesa. Essa “flexibilidade” nada mais é do que liberar os sócios do Mercosul para que busquem acordos comerciais bilaterais sem anuência dos demais, algo que hoje é restrito e que os quatro presidentes terão de tratar na cúpula de 26 de março, em formato virtual, tão sem brilho como o próprio Mercosul.