A reforma imigratória enviada pelo democrata ao Congresso no seu primeiro dia de governo facilita o acesso à regularização dos que já estavam no território americano até o dia 1 de janeiro de 2021.
Lúcia Müzell, enviada especial a Washington e Silver Spring
Na cidade de Silver Spring, ao norte de Washington, a notícia é recebida com alívio e entusiasmo. “A gente está contando muito com isso, ficamos 24 horas tentando ter mais notícias, porque não queremos ficar aqui sem documento”, afirma a paulistana Kelly, 27 anos, que aguarda há mais de três anos a mudança do seu visto de turista para o de estudante, um processo que normalmente levaria um ano.
Silver Spring abriga a maior comunidade brasileira da região da capital, no Estado de Maryland, um dos mais progressistas dos Estados Unidos e onde Biden obteve 62% dos votos na eleição. Em Maryland, os estrangeiros sem documentos podem trabalhar e estar em dia com os tributos, uma vantagem crucial na hora de solicitar um visto de permanência no país.
Kelly deixou o Brasil e a faculdade de engenharia de produção depois de perder o emprego, em uma fabricante de bebidas. “A situação no Brasil está bem difícil. Temos muita saudade de lá, mas não podemos nem viajar enquanto não temos o visto de permanência. A minha irmã está grávida no Brasil e não vou poder ver o meu sobrinho tão cedo”, lamenta.
Kelly e o marido, Roney, estão ansiosos pela aprovação da reforma imigratória de Biden. © Lúcia Müzell/RFI
Os anos Trump ficarão marcados como um período em que “tudo estava mais difícil” para conseguir a documentação para os imigrantes latinoamericanos. O projeto de construção de um muro na fronteira com o México dava a sensação de que o cerco estava se fechando para todos.
“Conhecemos muitos brasileiros que vieram, ficaram sem visto, mas estabeleceram família, têm filhos americanos, compraram uma casa, mas ainda não têm documentos. Eles estavam apreensivos e não sabiam até onde o governo de Trump poderia chegar, afinal as coisas estavam apertado”, relata Valery Almeida, moradora há quase de 30 anos nos Estados Unidos, em situaçãoregular. A administradora mantém estreito contato com a comunidade brasileira de Silver Spring. “Agora, eles estão aliviados. É uma luz.”
A garçonete paulista Elvira concorda. “Está todo mundo falando e esperando que vai ser muito bom. Para quem paga os impostos, vai ser ainda mais tranquilo”, aponta a carioca, que há cinco anos quis mudar para os Estados Unidos para realizar o sonho dos filhos de morarem no país. “Eles já se sentem americanos. Em relação à segurança e à facilidade de se dar bem na vida, é muito melhor aqui do que no Brasil, infelizmente”, justifica.
Detalhes do projeto – O especialista em imigração nos Estados Unidos Leonardo Freitas, diretor da consultoria de mobilidade global Hayaman-Woodward, em Washington, confirma que há razões para otimismo. Essa pode ser a regularização imigratória mais ambiciosa em 35 anos.
“A administração Biden promete uma reforma avassaladora. Por exemplo, os dreamers, os filhos de imigrantes que chegaram aqui e nunca se legalizaram, terão autorização temporária de permanência e poderiam automaticamente conseguir um green card e, três anos depois, obter a cidadania”, explica.
Leonardo Freitas, especialista em imigração nos Estados Unidos e diretor da consultoria de mobilidade global Hayaman-Woodward, em Washington. © Lúcia Müzell/RFI
Os critérios para a regularização variam, de acordo com a declaração ou não de impostos, o tempo de contribuição e situação atual da estadia – o imigrante pode estar sem visto ou já ter tido uma ordem de expulsão emitida pelos serviços de imigração. Entretanto, mesmo nestes casos, o projeto de Biden sinaliza tolerância. “São pessoas que já ultrapassaram o tempo de legalização e sofrem um banimento por 10 anos. Com a proposta de reforma, o banimento é eliminado”, aponta Freitas.
“Já os sem documento poderão se beneficiar de uma proteção semelhante à acordada a cidadãos de países como Honduras, Libéria, Somália ou Haiti, durante cinco anos. Depois, se passarem por uma checagem criminal e tudo estiver correto, essas pessoas podem ter direito ao green card, cumprindo alguns critérios”, complementa.
Promessas não cumpridas – O mineiro Gelson Silva acompanha de perto as últimas notícias – mas depois de 20 anos de expectativas e promessas, prefere ver para crer. Neste período, chegou a ser preso, teve ordem de expulsão, mas conseguiu regularizar a situação na justiça. Hoje, é dono de um restaurante em Silver Spring, o local mais frequentado da região pela comunidade verde-amarela.
“A maior decepção foi o Obama. Se elegeu falando que iria legalizar um monte, mas foi o presidente que mais deportou em toda a história. Eu aprendi que tem que esperar para ver se vai mesmo acontecer porque já cansei de acreditar em projetos. Em início de mandato, é conversa fiada”, diz o gerente, dando de ombros. “Da mesma forma, também não fiquei com medo de ter problemas com Trump. A gente simplesmente aprende a lidar e olhar para tudo isso com mais frieza.”
O mineiro Gelson Silva prefere ver para crer. “Em início de mandato, é conversa fiada”, afirma. © Lúcia Müzell/ RFI
Para ele, a maior vantagem da obtenção do green card seria ganhar o direito de poder viajar ao Brasil, onde deixou uma filha que hoje tem 25 anos. Há duas décadas, ele não põe os pés no país natal. “Não devo nada para imigração, mas não posso sair. É como se eu estivesse solto e preso ao mesmo tempo.”
Aumento de green cards durante os anos Trump – Leonardo Freitas indica que o número de brasileiros que solicitam o green card americano só cresceu desde o governo de Barack Obama. Por consequência, as concessões do visto também nunca foram tão altas.
A contadora Karina Rêgo foi uma das que se obteve recentemente o visto de permanência, em 2019. Ela e o marido foram parar em Columbia para reunir a família – o enteado já morava na cidade americana.
“Nunca foi um sonho. Foi uma coisa que simplesmente aconteceu”, afirma. “Fácil nunca é, porque a burocracia e o processo todo é muito chato. Mas quando você tem tudo organizado e planejado, faz com que o processo seja tranquilo”, relata a pernambucana, que diz sempre ter sido bem tratada pelos serviços de imigração americanos.
A contadora Karina obteve um green card rapidamente, durante o governo Trump. © Lúcia Müzell/RFI
“Teve um ápice muito grande durante o governo Trump porque muitos temiam não conseguir mais entrar nos Estados Unidos por causa da agenda imigratória protecionista e, de certa forma, um tanto xenófoba do Trump”, indica Freitas. “Essa situação veio de encontro aos interesses de muitos brasileiros, que estavam querendo fugir de uma situação social, econômica e política de turbulências no Brasil. Eles vieram para os Estados Unidos para tentar se colocar no mercado americano”, observa o especialista.
A diplomacia brasileira acompanha a evolução do projeto, que primeiro deve ser votado na Câmara e, depois, no Senado. O Partido Democrata está em vantagem em ambas as casas, o que sinaliza um caminho relativamente aberto para a aprovação definitiva do texto nos próximos meses.
“O projeto diz respeito a questões internas americanas, à visão que eles têm de incorporar pessoas que tenham entrado em uma situação irregular. O Brasil é uma pequena fração disto”, ressalta o embaixador em Washington, Nestor Forster Jr. “Mas é claro que se puder beneficiar brasileiros, estaremos interessados em acompanhar e a nossa rede consular vai orientar os nossos cidadãos, para verem como podem assegurar os seus direitos, caso haja a mudança legislativa, que ainda depende de aprovação do Congresso.”