BRUXELAS, BÉLGICA (FOLHAPRESS) – Boris Johnson já tem uma tábua de salvação a que se agarrar para surfar a onda de más notícias no Reino Unido: o programa de vacinação britânico entrou nesta segunda (18) em sua segunda fase. Quase 5 milhões de maiores de 70 anos e 1 milhão de doentes serão convidados para entrar na “corrida contra a morte”, apelido dado ao programa por seu responsável, o ministro Nadhim Zahawi.
A uma taxa de 140 injeções de imunizante por minuto, o país já deu a primeira dose a 3,9 milhões de pessoas (dados de sexta, 16) e cerca de 400 mil receberam também a segunda. É pouco perto dos 54 milhões de adultos que se espera vacinar, mas é muito à frente dos vizinhos -na Itália, o segundo europeu com mais vacinas aplicadas, o número não chega a um terço, tanto no total quanto ponderado pelo número de habitantes.
Para ajudar, nesta semana o governo viu recuar o número de novos casos. A contabilidade do governo mostra queda de mais de 22% na semana que terminou dia 17. As taxas caíram em todas as regiões da Inglaterra, de acordo com a agência PA Media.
Ainda é cedo para comemorar. Os números mostram que a transmissão não foi totalmente vencida -a taxa de contágio mais recente (Rt de 1,2 a 1,3) ainda indicava uma expansão, o que mantém um sinal de alerta para os hospitais, que temem um colapso.
Segundo o sistema de saúde pública (NHS) inglês, a cada 30 segundos um novo paciente é internado com Covid-19 no país. De sexta para sábado, por exemplo, 4.179 leitos receberam novos doentes, um aumento de 13% na semana.
Mas, ao menos dessa vez, o governo de Boris Johnson tem uma história de sucesso para mostrar. O deslanche em seu programa de vacinação foi resultado de pelo menos sete apostas certas feitas nos últimos meses. A primeira delas foi investir na pesquisa e no desenvolvimentos de vacinas, que permitiu à Universidade Oxford e ao laboratório AstraZeneca se tornarem um dos consórcios pioneiros no lançamento de um produto comprovadamente viável.
Essa estratégia também permitiu agilizar ensaios clínicos e garantir o acesso às ampolas. A fabricação em seu próprio território facilita a distribuição dos imunizantes e evita problemas como o enfrentado pelo Brasil na última semana, quando precisou adiar um voo que buscaria doses na Índia. O governo britânico também se planejou para ampliar a produção no país, firmando convênio com outros laboratórios.
Um segundo acerto do Reino Unido foi garantir rapidamente contratos com fabricantes. Em meados do ano passado, já havia anunciado contatos com cinco empresas além da AstraZeneca: Janssen (Bélgica), Novavax (EUA), Pfizer/BioNtech (EUA/Alemanha), Valneva (França) e GSK/Sanofi (Reino Unido/França).
Em terceiro lugar, o país foi o primeiro na Europa a aprovar o uso de uma vacina, mais de um mês à frente do resto do continente. A MHRA (agência reguladora) deu sinal verde à vacina da Pfizer no dia 2 de dezembro, o que lhe garantiu 1 milhão de doses disponíveis já na semana seguinte. No fim do mês foi a vez da vacina da Oxford e, em janeiro, o imunizante da Moderna também foi aprovado. A dianteira foi possível porque o governo britânico mudou a regulação da MHRA, permitindo que vacinas fossem autorizadas para uso antes do registro definitivo.
Um quarto passo que o Reino Unido deu antes de todos foi adiar a segunda dose, para dar a primeira ao maior número possível de pessoas. Embora controversa -cientistas apontam risco de que isso estimule mutações-, a medida foi depois avalizada pelo grupo consultivo da OMS, como recurso para proteger um número maior de pessoas.
A postergação da segunda dose pode acabar se virando contra Boris se o atraso no fornecimento de vacinas -como já aconteceu no caso da Pfizer- prejudicar a administração da segunda injeção, mas o NHS diz que o fornecimento está garantido pela Pfizer e pela AstraZeneca.
O quinto passo foi ampliar ao máximo o acesso -o compromisso é que todo morador da Inglaterra tenha um posto há no máximo 16 km de sua casa. O sistema de saúde abriu nesta semana mais 10 dos 50 megacentros de vacinação planejados. Além das megaestruturas, as doses podem ser tomadas em 1.200 clínicas, cerca de 200 farmácias e mais de 200 hospitais. Até o fim do mês, o governo promete vacinar 24 horas por dia.
Uma sexta diferença favorável aos britânicos é um sistema fácil de inscrição para ser vacinado, sem necessidade de consulta médica nem de consentimento por escrito, como os exigidos em alguns países da Europa.
Por fim, Boris Johnson prioriza ações guiadas pela ciência do comportamento desde antes de virar primeiro-ministro, em sua campanha pelo brexit, em 2016. O Reino Unido acordou cedo para a necessidade de contra-atacar os antivacinas e lançou campanhas massivas de mensagens positivas nas redes sociais, ações para remover posts com desinformação e equipes para tirar dúvidas.
Salvo imprevistos, essas sete decisões podem fazer Boris reverter a imagem de incompetência que lhe vinha sendo atribuída durante a pandemia, após ele descumprir várias promessas de implantar testes, fracassar em seu aplicativo de rastreamento e decretar confinamentos tardios, hesitantes e ineficazes.
Mesmo nessas áreas, o premiê começa a dar a volta por cima. O governo britânico anunciou na semana passada que vai dobrar as unidades de teste, para 500, e que bateu o recorde de pessoas contatadas: mais de 1 milhão nos primeiros sete dias do ano. Segundo o NHS Test & Trace, o programa consegue colocar em isolamento 86,6% daqueles com teste positivo e 92,7% dos seus contatos.
A pressão sobre o serviço vai aumentar, agora que todos os corredores de viagem foram fechados: qualquer pessoa que chegue ao Reino Unido tem que fazer quarentena obrigatória de dez dias (ou 5, se tiver um teste negativo para Sars-Cov-2), mas, segundo o jornal britânico Sunday Times, pode receber ajuda de GPS, reconhecimento facial e inteligência facial.
Nesse novo sistema de vigilância, não confirmado pelo governo, quem estiver em quarentena seria contatado uma vez por dia e convidado a mandar um selfie em até 20 minutos. Softwares checariam o rosto e o local da foto. A polícia seria acionada se a foto não fosse recebida ou a imagem não comprovasse o confinamento.
Se a prancha da vacinação continuar firme, Boris Johnson tem chance de enfrentar melhor uma segunda tempestade, do lado da economia. A consumação do brexit trouxe custos e atrasos para várias empresas, levando até ao desabastecimento em algumas lojas, e o novo confinamento elevou as chances de que o país mergulhe de novo em recessão.
No primeiro semestre, o PIB do país caiu 3% até março e 19% no segundo trimestre, no maior declínio da história do Reino Unido. Em novembro, quando foram fechadas lojas não essenciais, bares, restaurantes e parte dos hotéis, a economia recuou 2,6% em relação a outubro (no setor de serviços o tombo foi de 3,4%). O resultado pôs fim a seis meses consecutivos de recuperação da primeira onda.
A crise econômica por enquanto tem sido amortecida politicamente pelo esquema de redução das horas trabalhadas, na qual o governo assume o pagamento de parte do salário dos empregados. No médio prazo, porém, devem faltar recursos para que Boris cumpra uma de suas principais promessas da campanha de 2019: a de merecer a confiança dos eleitores do norte e centro-norte do país, que votaram pela primeira vez no Partido Conservador à espera de investimentos públicos e reativação da economia.