Rodrigo Craveiro
Tudo começou às 15h (9h em Brasília) de 9 de novembro, na cidade rural de Mai Kadra, na porção oeste de Tigray (norte) — palco de confrontos entre milícias apoiadas pela Frente de Libertação do Povo Tigré (TPLF) e as tropas do primeiro-ministro, Abiy Ahmed Ali, laureado com o Nobel da Paz no ano passado. Integrantes do “Samri”, grupo armado informal composto de jovens moradores da própria região, atacou Genb Sefer. O bairro é habitado por trabalhadores sazonais da lavoura de painço (um tipo de cereal) e de gergelim, membros da etnia Amhara. Assassinos usaram facas, machetes e machadinhas e armas de fogo
Os agressores invadiram a residência de um ex-soldado e desertor do Samri, executaram-no diante da família e queimaram o corpo. Depois, segundo relatos de testemunhas à Comissão Etíope de Direitos Humanos (EHCR), foram de casa em casa, de rua em rua, e mataram centenas de pessoas. Com a ajuda da polícia local e da milícia, usaram cassetetes, facas, machetes (tipo de sabre de dois gumes) e machadinhas no massacre dos Amhara. Muitos deles foram estrangulados com cordas. A estimativa é de que 600 civis acabaram mortos. Em Genb Senfer, é comum que até 12 civis dividam um mesmo teto.
Daniel Bekele (leia Três perguntas para), comissário-chefe da Comissão Etíope de Direitos Humanos (EHCR), admitiu ao Correio que o número de vítimas do massacre pode ser ainda maior. “A maioria das pessoas foi enterrada em valas comuns. Quando nossa equipe chegou à cidade para a investigação, ainda havia cadáveres nas ruas que ainda não tinham sido enterrados”, comentou. Um relatório da EHCR apontou que os jovens do Samri agiram em grupos de 20 ou 30, apoiados por três ou quatro policiais armados e por milicanos, estrategicamente posicionados nas esquinas. Algumas pessoas que tentaram fugir foram executadas a tiros. Os assassinos saquearam e destruíram imóveis.
Sobreviventes contaram que se esconderam em aberturas nos telhados das casas, se fingiram de mortos após serem brutalmente espancados ou conseguiram se camuflar em meio aos pés de painço. Muitos ficaram gravemente feridos, com mutilações e lacerações provocadas pelas cordas no pescoço, após serem arrastados. Laetitia Bader — diretora da Human Rights Watch (HRW) para o Chifre da África — explicou à reportagem que a própria pesquisa inicial da organização não governamental (ONG), as conclusões da Anistia Internacional e da EHCR deixam poucas dúvidas de que “possivelmente centenas de pessoas foram brutalmente assassinadas e muitas outras ficaram feridas em ataques horríveis”, na cidade de Mai Kadra.
“O incidente foi assustador”, comentou Laetitia. “O que está claro, entretanto, é que esses eventos não ocorrem em uma espécie de vácuo. Nos últimos três anos, a Etiópia tem enfrentado graves distúrbios e violência intercomunitária e étnica. E eles continuam, em meio aos combates na região do Tigré”, lamentou. A diretora da HRW sublinhou a importância de um inquérito independente sobre o incidente de Mai Kadra e de analisar como ele se encaixa em abusos mais amplos contra civis etíopes. Os enterros das vítimas demoraram três dias.
Premeditado – Por sua vez, Hone Mandefro, diretor de advocacia da Associação Amhara nos EUA, contou ao Correio que recebeu fotografias e vídeos de corpos, além de gravações em áudio de testemunhas. “Falei com pessoas que ajudaram a coletar os corpos e a transportar os feridos para os hospitais de Abrehajirra e de Gondar. Civis que fugiram para Gondar também compartilharam os horrores de como esse massacre ocorreu”, disse. “Foi um ataque coordenado e premeditado. Naquela manhã, as vítimas tinham sido alvos de batidas policiais em suas casas. Os agentes conferiram os documentos de identidade, para listar quem era da etnia Amhara. As saídas de Mai Kadra foram bloqueadas por vários dias pelo Samri e por forças de segurança”, acrescentou. A Associação Amhara mobiliza membros da etnia para sensibilizar políticos, ONGs e imprensa sobre a crise humanitária enfrentada pelos seus semelhantes na Etiópia.
De acordo com Mandefro, a Etiópia encontra-se divida em linhas étnicas, e o sistema de federalismo étnico abastece disputas entre as elites. “Esses problemas resultam de reformas introduzidas pela TPLF na década de 1990, como forma de dividir e governar para prolongar o seu domínio. A competição e o conflito tornaram-se parte da política, por meio do massacre de grupos, principalmente os amharas, desde que Abiy chegou ao governo, em 2018”, explicou. Ele lembra que o conflito no Tigré é fruto de uma luta pelo poder entre elites da TPLF que perderam prestígio depois da ascensão de Abiy ao posto de premiê, em 2018. Embora os moradores do Tigré representem apenas 6% da população total da Etiópia (108 milhões), a TPLF dominou a política nacional por 27 anos, até 2017. “Agora, o partido tenta ativamente semear conflito e desestabilizar a nação. Os Amhara, que vivem em diferentes áreas da Etiópia, são vulneráveis a ataques e a massacres”, disse Mandefro.
A chilena Michelle Bachelet, alta comissária para os Direitos Humanos da ONU, mostrou-se “alarmada” com a “retórica altamente agressiva” dos grupos envolvidos em combates no Tigré e disse temer “novas violações do direito humanitário internacional”. A primeira reunião do Conselho de Segurança da ONU sobre o conflito no Tigré terminou, ontem, sem pronunciamentos. Países africanos se retiraram do encontro e expuseram as divisões do organismo para pôr fim aos enfrentamentos na Etiópia, que se arrastam há três semanas.
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Atores envolvidos
O conflito envolve a Frente de Libertação do Povo do Tigré (TPLF), um partido político que controla a região de Tigray, no norte da Etiópia, e o governo central do país — comandado pelo primeiro-ministro Abiy Ahmed Ali, laureado com o Nobel da Paz em 2019. A unidade paramilitar e a milícia local mantidas pela TPLF somam 250 mil combatentes.
Causas
Abiy determinou o adiamento de eleições nacionais marcadas para junho, por causa da pandemia do coronavírus. O governo etíope acusou a TPLF de realizar um pleito ilegal, três meses depois, e de atacar uma base militar para roubar armas, em Mekelle (norte).
Operação militar
Em 4 de novembro, Abyi lançou uma operação militar contra a TPLF, em resposta ao ataque, acusando a organização de “traição”. O governo federal mobilizou membros da milícia Amhara para lutar no Tigré.
Desastre humanitário
Os combates forçaram a fuga de pelo menos 40 mil etíopes, que cruzaram a fronteira com o Sudão. A ONU espera 200 mil refugiados nos próximos seis meses.
» Três perguntas para
Daniel Bekele, comissário-chefe da Comissão Etíope de Direitos Humanos (EHCR)
O que a Comissão Etíope de Direitos Humanos sabe sobre o massacre de Mai Kadra?
O massacre foi perpetrado por um grupo informal de jovens conhecido como “Samri”, que foi ajudado e incitado pela polícia local e por milícias que compõem o esquema de segurança do governo local.
Que evidências sua equipe coletou na área dos crimes?
Nossa equipe de investigadores reuniu evidências das vítimas, como depoimentos de testemunhas, de soldados e de funcionários do hospital local. Também visitamos a área e estivemos diante das covas coletivas.
Quais iniciativas vocês tomarão para levar os responsáveis à Justiça?
Nós acreditamos que nossas descobertas e recomendações deveriam servir de base para responsabilizar os perpetradores e garantir que sobreviventes e suas famílias também recebam assistência humanitária de que precisam para se recupera desta terrível tragédia.
» Eu acho…
“Estamos encontrando maneiras de garantir que as histórias de todos os civis, de todas as comunidades da região, sejam ouvidas. Fazer isso é crucial. Tanto para garantir que a comunidade internacional esteja ciente da gravidade da situação, quanto para garantir que os responsáveis sejam um dia responsabilizados.” Laetitia Bader, diretora da Human Rights Watch (HRW) para o Chifre da África.