Destruição do porto de Beirute em explosão na última terça-feira deve agravar a situação
Rodrigo Craveiro
A dívida soberana chega a mais de 170% do Produto Interno Bruto (PIB), estimado em US$ 88,25 bilhões. O desemprego atinge 750 mil pessoas — 35% da população economicamente ativa. O índice de pobreza afeta 50% dos 5,4 milhões de habitantes. O novo coronavírus infectou 5.672 e matou 70. No cenário político, o assassinato do ex-primeiro-ministro Rafic Hariri, em 14 de fevereiro de 2005, em um atentado com caminhão-bomba, reverbera como ferida aberta e acentua as divisões sectárias entre xiitas, sunitas e cristãos. A corrupção desenfreada encontrou guarida em várias esferas do governo. Falta água potável e os blecautes chegam a 20 horas diárias. Nesse contexto de várias crises, o Líbano sofreu, na última terça-feira, um golpe de consequências avassaladoras. A força da explosão e da onda de choque, que arruinaram o porto de Beirute, lançou o país rumo à beira do abismo. A tragédia, dentro de muitas que se arrastam há anos, transbordou para as ruas
Professor do Departamento de História e Arqueologia da Universidade Americana Libanesa, Makram Rabah explicou ao Correio que o atual sistema político do país carece de estabilidade e favorece conflitos sectários, além de agravar a polarização no cenário regional. “Grupos minoritários têm sido impedidos de se incorporar ao sistema. Por isso, alguns deles levantam-se e tentam destruir o mecanismo de poder. A razão para o fiasco em que se transformou a política do Líbano está no próprio sistema e nas pessoas que o dirigem, dispostas a vender a alma ao diabo.”
De acordo com Rabah, o país enfrenta uma crise orçamentária que minou a economia. “A situação é para lá de ruim. Temos um ‘Esquema Ponzi’ (operação fraudulenta de investimentos que promete altas taxas de retorno) que vigora há duas décadas, especialmente depois do assassinato de Rafic Hariri. Além disso, depois da guerra com o Iraque (1980-1988), o Irã ascendeu como potência regional. Os iranianos chegaram a usar o Líbano como escudo”, comentou. O especialista adverte que a destruição do porto de Beirute torna a situação pior. “O porto era a principal linha de acesso com o mundo externo e é virtualmente impossível de reconstruí-lo na atual conjuntura.” Para ser recuperado economicamente, o Líbano precisaria de cerca de US$ 10 bilhões.
Em uma nação onde a proporção de sunitas é quase igual à de xiitas, as tensões recrudesceram-se após a morte de Hariri. “Outro elemento importante foi a guerra na Síria, pois o (movimento fundamentalista xiita) Hezbollah se envolveu no conflito, apoiando o presidente Bashar Al-Assad contra a revolução da maioria sunita”, avaliou ao Correio Moufid Mustafa, analista político e jornalistas libanês baseado em Doha (Catar). O Hezbollah também domina a esfera política no Líbano e conta com a lealdade do presidente, Michel Aoun, e a maioria do Parlamento.
Roubo – Professor de história na mesma universidade, Habib C. Malik admitiu à reportagem que, durante anos, o Líbano tem sido vítima de “um grande e sistemático roubo de ativos por parte de um cartel de ladrões corruptos e criminosos, ao estilo da máfia, o qual constitui a maior parte da classe política”. “A situação chegou ao ponto de ruptura no outono passado, quando a economia começou a colapsar e a moeda entrou em queda livre. Anos de empréstimos e de roubos culminados com empréstimos adicionais junto aos bancos levaram o Líbano à beira da bancarrota”, relatou. Não à toa, manifestantes invadiram, ontem, a sede da principal associação de bancos de Beirute.
Malik aponta a falta de consciência da “oligarquia cleptocrática”, a qual age como “predadora da miséria do povo”. “Tudo isso com a proteção e a anuência do Hezbollah”, destaca. Segundo ele, o movimento — comandado pelo xeque Hassan Nasrallah e um dos principais inimigos do Estado de Israel — beneficia-se do contrabando, da lavagem de dinheiro e de outras atividades ilícitas. “Agora, o Hezbollah impede o governo fantoche de implementar reformas reais e afugenta doadores ocidentais, como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial.”
Ainda de acordo com Malik, a história do Líbano foi marcada por momento bons e ruins. “Nos bons tempos, a rara fórmula de coexistência pacífica pluralista entre os vários componentes sectários funcionou bem, produzindo paz e prosperidade”, afirmou. “Durante os momentos ruins ocasionais, tal fórmula vacilou e os resultados de miséria tiveram de ser recompostos, para que os ciclos bons e ruins prosseguissem.” O estudioso acredita que a recuperação econômica do país será mais lenta e mais desafiadora, depois da explosão de terça-feira. “O Líbano também lida com múltiplas crises suportadas de uma única vez, algumas delas bastante sérias.”
Outro elemento que impacta a estabilidade libanesa é a tensão regional entre sunitas e xiitas — principalmente entre o Irã, centro de influência do xiismo, e os Estados árabes sunitas, além da Arábia Saudita. “O enervamento é fruto da expansão imperialista iraniana, que usa o tema da Palestina para ‘legitimar’ tal expansão e dominação”, observa Malik.
Pontos de vista
Por Habib C. Malik
Um jogo de teatro
“Hoje, o Hezbollah deixou de ser apenas uma milícia armada para se tornar o poder político e militar dominante dentro do Líbano, ao sequestrar o país à esfera de influência do Irã. Pelo fato de Israel e Hezbollah desejarem evitar uma guerra total, ambos criaram um arranjo pelo qual Israel ataca os armamentos do Hezbollah, como ocorreu na última terça-feira, no porto de Beirute, e depois eles negam a ofensiva. Esse jogo de teatro pode ser conveniente para os dois atores, Israel e Hezbollah, mas ocorre às custas do Líbano e agrava a miséria do povo de maneira letal. A vasta maioria dos libaneses rejeita o sequestro do Líbano pelo Hezbollah à esfera iraniana, pois igualmente repele esse jogo sangrento. A neutralidade para o Líbano é o único caminho a seguir e exige que as potências regionais e internacionais reconheçam e aceitem este rumo.”
Professor de história da Universidade Americana Libanesa (em Byblos)
Por Moufid Mustafa
Regime sectário
“O regime em vigor no Líbano é sectário. O governo divide-se entre essas seitas, da autoridade de mais baixo ao mais alto nível. A lealdade das seitas não se dirige ao Líbano, mas a outros países. Por exemplo, a lealdade dos sunitas é pela Arábia Saudita ou pela Turquia; a dos xiitas volta-se ao Irã; a dos cristãos devota-se à França e ao Ocidente. Toda vez que existir um malfuncionamento no balanço das seitas ou um problema entre os sauditas e os iranianos, isso causará uma guerra por procuração, que levará à turbulência e ao assassinato político.”
Analista político, jornalista e escritor libanês baseado em Doha (Catar)