Marcílio Souza
Notícias falsas também nos acompanham há muito tempo. Hoje, com a ampliação das formas de comunicação, especialmente a partir da chegada da internet e das redes sociais, percebemos a multiplicação das possibilidades de emissão de informações e de narrativas destoantes de realidades, atos e fatos.
Entretanto, a necessidade de inibição e controle dos excessos, bem como a disputa de interesses, não pode coibir o uso das variadas plataformas comunicativas da atualidade, nem atingir um dos pilares da nossa democracia: a liberdade de expressão e opinião.
Considerando a realidade social polarizada em que estamos inseridos no Brasil, torna-se necessária a definição de um conceito geral de fake news e a apresentação de outras visões conceituais atreladas a interesses e a posicionamentos políticos e ideológicos.
Em primeiro lugar, o conceito clássico, sem viés político ou ideológico. Por fake news entende-se “informação falsa produzida com a intenção de enganar”, de acordo com o glossário do EducaMídia.
Em segundo, a partir da visão e dos interesses dos grandes veículos de comunicação, podemos pensar em fake news como informações e notícias mal elaboradas, com falhas técnicas e posicionamentos desviantes dos defendidos como padrões ‘essenciais’ para o establishment social, ordem econômica, legal, política e ideológica que constitui uma sociedade. Apesar de sempre afirmarem que de informações falsas e de boatos consistem às fakes news.
Para agentes públicos incompetentes, ou com comportamentos suspeitos, em terceiro lugar, visualizamos defesas de que fakes news consistem em informações distorcidas sobre as realidades, especialmente sobre os atos e as ações desastrosas de muitos. Estes defendem também que as “informações falsas”, produzidas para “enganar” a população, devem ser devidamente combatidas, inclusive por meio de legislação própria.
Não por último, em quarto lugar, existe ainda a defesa das pequenas plataformas comunicativas, dos blogueiros e dos comunicadores independentes, especialmente os de direita, que normalmente vêem o assunto das fakes news como narrativas e tentativas dos poderosos, como políticos, membros do judiciário e da grande mídia, em limitar suas liberdades de opinião e expressão.
Todavia, o mais prudente é atermos ao primeiro conceito de fake news, apesar das diversas distorções propostas por aí, quase sempre em decorrência de interesses e visões de mundo específicas. Apesar desse conceito impor dificuldade na definição do conteúdo que é ou não fake news.
Devemos ademais ter sempre em mente que em disputas por poder, geralmente, os mais fortes tendem a dominar e reprimir os mais fracos. Assim, na prática, os comunicadores independentes e as pequenas e médias empresas de mídia deveriam ser protegidos, pelas legislações relacionadas à comunicação social, dos anseios e interesses dos grandes veículos e demais poderosos. Mas nem sempre isto ocorre.
Cientes do uso político e da ideologização do termo fake news, é imprescindível um cuidado especial para se desvendar o constante desejo, e mesmo práticas, de muitos em rotular como fakes news as informações e as notícias que os desagradam e contrariam, ou são conflitantes com as suas próprias convicções e visões, políticas ou ideológicas.
Historicamente, os embates sobre informações e notícias falsas, sem respaldos condizentes dos fatos ocorridos, são antigos e recorrentes. No entanto, o advento das redes sociais e a pulverização de plataformas comunicativas na internet intensificaram as disputas por espaços, as próprias fakes news e as tentativas de rotulação como falsas as produções de, meramente, concorrentes.
Neste embalo, atores de áreas distintas da comunicação social passam a usar e abusar dos conceitos relacionados às fakes news, por vezes distorcidos, para atenderem a interesses específicos.
Importante enfatizar que fake news consiste em uma versão elaborada das velhas mentiras, amplamente usadas no seio das sociedades no decorrer da história humana. No âmbito coorporativo também é comum a criação e circulação de informações falsas sobre pessoas e empresas, com mero propósito de prejudicar, denegrir imagem ou expandir mercados.
Em muitos casos, a propagação de informações falsas caracteriza-se como uma das táticas do assédio moral nos ambientes profissionais. Apenas pelo elevado potencial de prejudicar, as informações falsas devem ser combatidas, em qualquer uma das versões e usos.
Mudando de enfoque, tanto o fato da elevada interferência das redes sociais no processo eleitoral de 2018 como a possibilidade de incrementos na participação delas na eleição municipal de 2020, em plena pandemia, quando o cenário tem se apresentado mais conturbado e incerto, promoveram debates e acusações entre os diversos atores, de inúmeros setores, envolvidos. Em decorrência disto, surgiram iniciativas para a regulamentação do tema, mesmo que às pressas e com diversificados itens prejudiciais às liberdades individuais de opinião e de expressão.
No entanto, apesar da falta de legislação específica sobre às fakes news, a Constituição Federal de 1988 é clara quanto à liberdade de expressão e, ainda, com a participação de outros ordenamentos jurídicos, proíbe a injúria, a difamação, a apologia de crimes, a defesa de ruptura institucional, o racismo e outros abusos similares. Assim, a liberdade de expressão não se trata de direito absoluto, mas sim limitada por possíveis exageros e abusos previstos nas legislações. Hoje, já existe a possibilidade de cada um acionar na justiça qualquer abuso ou infração nessa área.
Um caso emblemático de erro jornalístico, dentre tantos outros, com graves consequências, que atualmente seria facilmente enquadrado como fake news, temos a cobertura e publicação sobre à Escola Infantil Base, da cidade de São Paulo. Os veículos de comunicação embarcaram na versão de duas mães de alunos que acusavam, injustamente, os donos e outras pessoas ligadas à escola de abusarem sexualmente de estudantes. Nada foi comprovado na polícia ou na justiça e a escola foi depredada e encerrou as atividades. Relatos de familiares dos proprietários da instituição de ensino apontam o erro como fator preponderante na morte de um dos sócios, e ainda na destruição da reputação de outros envolvidos.
Nos anos 1970, a propagação da informação inverídica de que o leite em pó substitui sem danos o materno e a promoção do aleitamento artificial em países do ‘terceiro mundo’, especialmente da África, concretizou em um caso internacional de desinformação e de falta de responsabilidade social corporativa, naquela ocasião, de uma grande empresa suíça, a Nestlé. Na atualidade, algo dessa proporção seria um grande escândalo. Como aconteceu lá atrás, em tempos de domínios exacerbados de grandes corporações, comerciais e midiáticas, ficou para a história apenas como um exemplo claro do poder, e dos danos, relacionados a uma informação falsa.
Por estes e diversos outros casos, elevados com as redes sociais, não resta dúvida a respeito da necessidade de uma legislação específica sobre as informações falsas na comunicação social brasileira. Entretanto, a rápida e pouco eloquente proposta de regulamentação das fakes news, o PL 2630/2020, que chegou a propor redução de postagens e proibição de mensagens em período eleitoral, além de liberar invasões de privacidade de usuários, nada mais demonstra do que o interesse de poderes instituídos em estabelecer privilégios/proteção e retirar autonomia de novas forças sociais, que surgiram e estão em ampla expansão com a internet e as redes sociais.
Recentemente, em outra instância e no mesmo sentido, presenciamos a forte atuação do Supremo Tribunal Federal – STF no suposto enfrentamento das fakes news, especialmente nas relacionadas aos ministros da suprema corte que, por vezes, não passam de críticas e acusações fundamentadas dos deslizes e erros de alguns deles.
O ministro do STF, Alexandre de Moraes, após ordenar à Polícia Federal para realizar busca e apreensão de equipamentos eletrônicos na casa de supostos emissores de ataques e fake news contra o STF e alguns de seus ministros, solicitou a prisão de um jornalista pelos mesmos motivos e, há alguns dias, determinou que o Twitter, Facebook e o Instagram bloqueassem contas de 16 usuários.
Todos os ‘acusados’, ‘julgados’ e ‘punidos’ pelo referido ministro são apoiadores do Presidente da República, Jair Bolsonaro, que decidiu entrar com uma ação no STF, impetrada pela Advocacia Geral da União – AGU, contra os bloqueios nos perfis de apoiadores nas redes sociais.
Em outra perspectiva, um episódio envolvendo uma moradora do estado do Pará e a cantora Madonna nos demonstra o poder das redes sociais hoje. Após a repercussão sobre o vídeo viralizado de ‘Marina Silva de Manaus’ (ex-moradora de rua Maria Solange Amorim) dançando a música “Holiday” da estrela pop, a paraense recebe mensagem comemorativa de Madonna por ela ter conseguido ajuda para se livrar do vício das drogas -intensificado após o assassinato do filho- por meio de reabilitação em São Paulo. Atos inimagináveis antes das redes sociais. Com a exposição, a dançarina já conseguiu milhares de seguidores e fãs, além de quase meio milhão de curtidas no referido vídeo.
Por outro lado, Madonna foi vítima dos filtros, ou da censura, da plataforma Instagram, após postar e comentar um vídeo da médica Stella Immanuel, com forte defesa ao uso da hidroxicloroquina no tratamento e prevenção da COVID-19. Além de censurar o post, a rede social chegou a direcionar seguidores para uma página com informações contrárias às defesas da cantora. Este e tantos outros casos de interferência e de censura pelas provedoras de redes sociais indicam que elas não podem ser as únicas responsáveis pela mediação de conteúdos nas redes sociais e nem pelo julgamento do que é ou não fake news. Precisamos de poderes compartilhados neste sentido, em uma legislação futura sobre a questão.
No decorrer dos enredos e embates sobre fake news, percebe-se que muitos jornalistas e profissionais de comunicação, especialmente aqueles atuantes diretamente em grandes veículos ou que mantêm negócios e relações com eles, acabam reproduzindo e defendendo assuntos e teses, por vezes distorcidas e enviesadas, relacionadas ao tema das fakes news. Mais uma clara demonstração de defesa em causa própria.
Socialmente pensando, o correto seria os homens públicos, assim como todos os outros, realizarem práticas coerentes e honestas que não viessem a ferir suas imagens e reputações. Desta maneira, evitariam críticas e denúncias nos meios de comunicação e nas redes sociais. Entretanto, o contrário disto, quando as autoridades tentam punir os que apontam e denunciam suas falhas, inconsistências e, até, supostos crimes, elas nada mais demonstram do que fraquezas e, mesmo, tiranias.
Uma grande dúvida sobre a temática das informações falsas diz respeito a quem deve, e vai, assumir protagonismo no julgamento do que é ou não fake news. Para o judiciário assumir este papel será necessário uma otimização na emissão de pareceres e decisões, para não se perder o time das disputas entre os atores sociais envolvidos em cada caso. Os veículos tradicionais de comunicação e as empresas provedoras das redes sociais estão demasiadamente envolvidas na questão. O poder executivo, por meio do Ministério da Comunicação, com a criação de instância específica?
O ideal mesmo é a definição de normas e regras para as ações de todos os envolvidos, inclusive os usuários das redes sociais. O judiciário permaneceria responsável apenas por julgar, condenar e penalizar os excessos, os que infligirem as legislações gerais e específicas; sob a demanda de entes envolvidos ou da promotoria pública.
Certo é que a nova regulamentação das redes sociais e das fake news requer, impreterivelmente, um amplo debate entre os mais diversos segmentos sociais, especialmente os diretamente envolvidos com estes objetos. Fora disto, a legislação pode ser insuficiente e privilegiar setores e entes específicos.
No jogo de interesses presentes no mercado comunicativo, sabemos que as redes sociais, ainda, são as que menos estão submetidas a filtros, a manuais de redação, a editorias chefes e a própria censura, tanto dos grandes meios de comunicação como dos seus financiadores, quer do poder público ou de anunciantes privados.
Vale salientar que, a forma como a mídia tradicional brasileira está distribuída nas mãos de poucas famílias (5 famílias controlam 50 veículos com maior audiência) e grupos empresariais, com forte participação na esfera política, além das naturais relações de poder, consiste em outra forma de filtro e de possível promoção de censura. Normalmente, só se publica o que convém ou com um viés previamente escolhido.
Assim, o mais salutar para a sociedade é que a liberdade de expressão e opinião seja preservada e que a pulverização das formas comunicativas permaneça. Tanto os grandes veículos, como os gestores públicos dos três poderes, além das pequenas e médias plataformas de internet e os comunicadores independentes e usuários das redes sociais, precisam aprender a lidar com essa nova realidade que se impõe em uma sociedade democrática e plural. Viva os novos tempos e a amplitude da comunicação social. Não cabe impor limites à comunicação social em sociedades democráticas.
Marcílio Souza é sociólogo e jornalista, mestre e doutor em comunicação.