Rui Tavares
A UE é um dos mais livres e iguais espaços de cidadania. Isso já não é coisa pouca e deveria aconselhar-nos a cuidar da sua preservação e aprofundamento.
O atual Tratado da União Europeia foi negociado num convento belga. A primeira versão, que mais tarde seria tantas vezes emendada até ao Tratado de Lisboa, foi terminada no início de 1957. Escolheu-se um local e uma data — Roma, 25 de março — para a sua assinatura por três presidentes e três monarcas dos seis países fundadores da UE.
Tomadas estas decisões, um funcionário da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço foi metido num comboio a partir do Luxemburgo. Levava com ele o texto do tratado e as máquinas de mimeografia que então se usavam para imprimir as cópias que seriam solenemente assinadas em Itália. Mas quando chegou à fronteira da Suíça este primeiro eurocrata ouviu um barulho na sua carruagem que prenunciava o pior. Sem que ninguém se tivesse lembrado disso, havia então uma lei suíça que determinava que as carruagens de mercadorias e as de passageiros fossem separadas e seguissem caminhos diferentes. O pobre homem lá perdeu um tempo precioso a localizar as máquinas de mimeografia e chegou à capital italiana já muito próximo da data da assinatura do tratado.
Era preciso tratar de tudo o mais depressa possível. Mas aí, novo contratempo. A sala onde era suposto instalarem-se os mimeógrafos, num palácio italiano, tinha as paredes cobertas com magníficas pinturas a fresco. Ora aquelas máquinas tinham o problema de espalharem tinta por todo o lado e os italianos não tinham dinheiro para restaurar os frescos depois. Foi preciso mudá-las para uma cave e encontrar estudantes italianos e secretárias vindas do Luxemburgo para compor rapidamente as matrizes para o texto. Mas os problemas ainda não tinham acabado: a cave era demasiado húmida e as folhas impressas demoravam muito tempo a secar. A única solução foi atapetar o chão com as páginas do futuro tratado da CEE e deixá-las repousar durante a noite.
Finalmente, de madrugada a sala foi aberta pelas empregadas da limpeza do edifício. Estas, encontrando o chão juncado de papelada, deitaram tudo para o lixo. Incluindo as matrizes que permitiriam imprimir novas cópias. Quando os já desesperados antepassados de eurocratas deram por isso, lançaram-se numa busca frenética pelos caixotes de lixo de Roma. Sem resultado. A solução acabou por ser imprimir apenas a folha de rosto com os nomes dos signatários e das respetivas “altas partes contratantes”, recolher as cópias logo após a assinatura, e confiar que ninguém contasse aos jornalistas.
O segredo foi guardado durante 50 anos. Até que há dez anos o secretário de Jean Monnet, Jean-Jacques Rabier, decidiu contar esta história inacreditável (mas, ao que tudo indica, verdadeira) com o intuito de humanizar os primeiros tempos do projeto europeu e explicar que não, nunca foi fácil desde o início.
As reações foram as previsíveis. Para os eurofóbicos, a história de como o Tratado de Roma foi assinado em folhas praticamente em branco é a primeira prova de como a UE foi uma vigarice desde o início. Para os europeístas, aquilo que estava em causa no Tratado de Roma — uma união aduaneira que em tempo se transformaria na União Europeia — era menos importante do que o compromisso para sempre em aberto de se criar um futuro de paz, democracia e prosperidade partilhada neste continente magnífico e trágico. O simbolismo é belo ou não, dependendo dos olhos de quem o vê. Assumamo-lo.
A UE é o maior espaço de cidadania de que fazemos parte. A não ser que o leitor seja chinês ou indiano, é mesmo um dos maiores espaços de cidadania de que é possível fazer parte. E é certamente, em comparação com o resto do mundo, um dos mais livres e iguais espaços de cidadania. Isso já não é coisa pouca e deveria aconselhar-nos a cuidar da sua preservação e aprofundamento e não a desistir dele à primeira dificuldade — que na verdade está muito longe de ser a primeira.Aos 60 anos, o projeto europeu tem ainda muitas páginas em branco. A questão, ontem como hoje, é saber se a todos é dada possibilidade de nelas escrevermos o nosso futuro.
Rui Tavares é historiador