Questionado, o acordo comercial entre o Mercosul e a Europa passa a ser alvo de um processo formal em Bruxelas. Entidades de direitos humanos e ambientais da UE entraram com uma queixa formal diante da Comissão Europeia para que o tratado seja anulado. O motivo: as políticas de Jair Bolsonaro no setor de direitos humanos e meio ambiente. O acordo, depois de 20 anos de negociações, foi assinado em meados de 2019. Mas, imediatamente, o tratado que abre o comércio entre os dois blocos passou a ser alvo de críticas por parte de diferentes grupos. Três parlamentos já votaram moções contra o projeto, o que demonstra a dificuldade que governos terão para ratificar o acordo.
Para que entre em vigor, todos os 27 países da UE terão de estar de acordo com os termos do pacto. A assinatura do tratado foi vendida por Brasília como um trunfo da política externa de Ernesto Araújo, na esperança de mostrar que o país não estava isolado. Os europeus, porém, admitem nos bastidores que o Brasil “entregou tudo” e cedeu em alguns dos principais pontos da negociação. Na prática, os exportadores europeus terão maiores vantagens que os exportadores do Mercosul, limitados por cotas consideradas como insuficientes para o setor agrícola.
O argumento de que a Europa saiu ganhando tem sido usado pela Comissão Europeia para tentar convencer os demais parceiros dentro do bloco de que o pacto é vantajoso. Mas a oposição ganha contornos cada vez claros. Nesta semana, cinco entidades europeias entraram com uma queixa em Bruxelas oficializando o pedido para que o processo seja suspenso. A iniciativa conta com a Federação Internacional de Direitos Humanos, a ClientEarth, Fern, Veblen Institute e La Fondation Nicolas Hulot pour la Nature et l’Homme. A documentação foi entregue ao Ombusdman da UE, um canal pelo qual a sociedade civil pode questionar o funcionamento da Comissão Europeia e exigir mudanças .
O principal argumento é de que a UE fechou o acordo sem que uma avaliação ambiental completa tivesse sido realizada, deixando ainda de fora aspectos de direitos humanos. “Ficou claro que a Comissão concluiu as negociações com o Mercosul sem ter concluído previamente o processo de avaliação ambiental”, diz o processo obtido pela coluna. Além disso, os documentos demonstrariam que a Comissão Europeia “conduziu as negociações sem informações apropriadas e atualizadas sobre os potenciais impactos sociais, ambientais e econômicos do acordo comercial proposto”.
As entidades indicaram que o primeiro intercâmbio de cartas ocorreu em julho de 2019 e que, nos meses seguintes, as queixas subiram de tom em diferentes reuniões. “A falha em levar em conta dados ou eventos recentes corre o risco de criar resultados incorretos e tendenciosos. Isto é particularmente crítico nas diferentes partes da análise ambiental, onde o estudo não leva em conta os dados mais recentes sobre desmatamento e as mudanças na governança florestal”, alertam. De acordo com a entidade, o único relatório interino realizado pela UE sobre o desempenho ambiental do Mercosul se refere a dados de 2016.
O documento, portanto “não inclui dados recentes sobre a taxa de desmatamento referente ao Brasil, bem como informações recentes sobre mudanças feitas em sua estrutura legal florestal”. A queixa destaca como, somente em junho de 2019, as taxas de desmatamento na Amazônia brasileira aumentaram em 88% em comparação com o mesmo mês do ano anterior. “Após uma mudança de governo em 2019, o desmatamento no Brasil aumentou devido à inversão das políticas e estruturas legais e institucionais de proteção florestal existentes”, indicaram.
“A nova administração governamental afrouxou ainda mais os controles ambientais e a fiscalização. Em seus primeiros meses, a nova administração dissolveu os departamentos climáticos e florestais; transferiu os Serviços Florestais Brasileiros (anteriormente abrigados pelo Ministério do Meio Ambiente) para o Ministério da Agricultura, e procurou à força transferir a demarcação de terras indígenas para o Ministério da Agricultura”, completaram. As entidades ainda acusam a UE de mencionar apenas “brevemente os incêndios na Amazônia em agosto de 2019, sem tirar conclusões ou avaliar se existe o risco de que surjam novas tendências nos próximos anos”.
Elas também se queixam de que “não há dados sobre o corte ilegal de madeira e sua contribuição para a mudança do uso da terra”. O processo também destaca que, nos informes oficiais, a UE cita números de 2013 sobre o uso de pesticidas e fertilizantes, o que não refletiria as novas tendências. “Por exemplo, o Brasil aprovou recentemente centenas de novos pesticidas”, alertam. Para completar, o exame oficial “não menciona a existência de violações dos direitos dos povos indígenas, que são apoiados por provas generalizadas”. “É particularmente problemático à luz do recente aumento de abusos e assassinatos contra as populações indígenas”, alertam.
Conclusão e suspensão Os documentos entregues à Comissão Europeia concluem, portanto, que os diplomatas de Bruxelas “conduziram as negociações na ausência de uma análise aprofundada, sólida e detalhada dos impactos potenciais dos acordos, com base em dados atualizados e apropriados, e sem um processo transparente e participativo”. “Como resultado, a Comissão não pode garantir que o Acordo não conduzirá e/ou contribuirá para a degradação social, econômica, ambiental e violações dos direitos humanos na UE e nos países do Mercosul”, alertam.
“Consideramos que o fracasso da Comissão em concluir uma avaliação de impacto de sustentabilidade antes da conclusão das negociações do Acordo de Livre Comércio UE-Mercosul constitui má administração”, denunciam. Diante das constatações, o grupo pede que a Comissão se abstenha em propor a assinatura do tratado. Caso isso não seja atendido, as entidades querem a suspensão do processo de ratificação.