Simone Kafruni
Terminada a 11ª reunião da cúpula do Brics — grupo composto por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul —, a análise de especialistas é de que o país sai fortalecido no âmbito econômico e enfraquecido politicamente. O saldo positivo são avanços em acordos aduaneiros e nas relações comerciais, com uma abertura maior do mercado brasileiro, e, sobretudo, com mais recursos para projetos de infraestrutura. Maior parceiro do país entre os integrantes do bloco, a China colocou à disposição do governo brasileiro mais de US$ 100 bilhões para investimentos a serem analisados em conjunto. Projetos nessa área contarão ainda com mais financiamentos do Novo Banco de Desenvolvimento (NDB, na sigla em inglês), mantido pelos sócios do Brics. Por outro lado, o encontro reforçou a percepção de que o alinhamento do Brasil com os Estados Unidos é um empecilho ao fortalecimento político do bloco. Além disso, a omissão sobre as crises na América Latina no comunicado final mostra que o país teve de ceder, perdendo força no agrupamento.
De concreto, a aprovação de um empréstimo do NDB, de US$ 300 milhões (cerca de R$ 1,2 bilhão), para expansão de infraestrutura de transportes da mineradora Vale nas regiões Norte e Nordeste mostra que a declaração do presidente do banco, Kundapur Vaman Kamath, de que Brasil, Rússia e África do Sul serão mais contemplados com financiamentos, não foi mera retórica. “Nossa meta é fazer financiamentos equilibrados no futuro. China e Índia tinham projetos mais preparados por seus governos. Foi um aprendizado que atrasou a curva. Agora estamos considerando projetos do setor privado e mais aportes na Rússia, Brasil e África do Sul do que nos outros países”, afirmou, durante o Fórum Empresarial paralelo à reunião de cúpula.
A fala soou como música para os ouvidos do ministro da Infraestrutura, Tarcísio Gomes de Freitas, que havia reconhecido “certo incômodo” com a subutilização do NDB pelo Brasil. “Tenho certeza que vamos contar, cada vez mais, com a presença do banco nos financiamentos e nas garantias”, disse ele, no mesmo evento. Também no fórum, os maiores empresários dos países do bloco recomendaram 23 ações para ampliar os negócios: um acordo entre as aduanas para dar mais rapidez ao desembaraço das mercadorias em todos os portos do Brics; novos tipos de financiamento para o banco do Brics na área de energia e para pequenas e médias empresas; e acordo na área de aviação.
Para o CEO da consultoria BMJ, Wagner Parente, do ponto de vista econômico, o principal ponto positivo foi a relação com a China, que marca uma virada em relação à abordagem que o Brasil tinha com o país asiático. “Esse processo ocorre desde a viagem do presidente Bolsonaro para lá e, agora, culmina nessa boa disposição que o governo demonstrou com a China. Não à toa, os chineses participaram do leilão de petróleo da cessão onerosa. Foi um recado. Outro, foi a declaração sobre livre-comércio, do ministro Paulo Guedes (Economia)”, avalia. Contudo, Parente ressalta que tal acordo é muito improvável. “As sensibilidades são grandes. Mas alerta os Estados Unidos de que não são os únicos parceiros com quem Brasil pode aumentar o comércio”, diz.
Para o setor produtivo doméstico, isso também foi uma boa notícia, no entender de Parente. “Com uma abertura maior do país, existe, sim, a possibilidade de ganhar mercado. O governo foi claro que prefere aumentar a corrente de comércio do que cultivar superavit na balança”, assinala. O setor agroindustrial quer muito ampliar o acesso ao mercado da China. “Não me parece, no entanto, uma ação prática. É mais prospectiva, de intenção.”
No caso das relações com a Rússia, a vinda do presidente Vladimir Putin foi uma demonstração importante, segundo o CEO da BMJ. “Putin dá importância estratégica e militar para a América Latina”, afirma. A Rússia quer exercer influência maior no continente e é aliada da Venezuela. “Não por acaso ocorreu a invasão da embaixada venezuelana durante a reunião. Esse assunto foi tratado, mas existe diferença de visões neste sentido”, observa.
Na opinião do especialista, um ponto alto do encontro foi a proposta de multilateralismo, sugerida pelo primeiro-ministro indiano, Narendra Modi. “Ele falou de OMC (Organização Mundial do Comércio), na contramão do que o Brasil tem apregoado, de que negociações bilaterais são mais pertinentes no momento”, avalia. Para a África do Sul, há um interesse comercial mais prático, já que a nação é exportadora de matéria-prima. “O país quer aumentar o comércio com o Mercosul. Já existe um acordo, que pode ser amplificado.”
Parente destaca que a abertura de um escritório regional para as Américas do NDB no Brasil é uma grande conquista. “O que havia de mais concreto para financiamento de infraestrutura era o Banco Mundial, que exige condicionantes ambientais, projetos sustentáveis. Nada disso é exigido pelo NDB e o empréstimo para a Vale mostra que o impulso para mais financiamentos no país já foi dado”, pontua. Entretanto, Parente lembra que a América Latina é “o elefante na sala”. “Ninguém quis falar publicamente, principalmente sobre Venezuela, em relação à qual o Brasil está no lado oposto do Brics.”
Interesses conflitantes – O encontro do Brisc reforçou a ideia de que o alinhamento do Brasil com os Estados Unidos é um obstáculo para o fortalecimento político do bloco, no entendimento de Fabiano Mielniczuk, professor de Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). “As discussões sobre Israel e Palestina e sobre a revisão do status de tratamento especial e diferenciado para países em desenvolvimento na OMC ilustram esse problema. Nesse sentido, o Brasil passa a ser uma voz destoante frente aos objetivos do agrupamento, e sai majoritariamente enfraquecido.”
Mielniczuk também não acredita que os acenos de livre-comércio com a China possam se concretizar. “É pouco provável. Parece mais uma cartada da equipe econômica para atenuar o receio do agronegócio brasileiro, apoiador do governo, ante os primeiros sinais de que a China poderá reduzir suas compras do Brasil, motivada por questões políticas”, avalia. Com os acordos de respeito à soberania nacional, com a Rússia pedindo respeito à Síria, a China, às Coreias, mas nenhuma palavra sobre Venezuela, mostra que “a retórica inflamada do governo brasileiro contra os vizinhos de esquerda não tem a mínima relevância para os países do Brics”, de acordo com o professor. “A omissão no comunicado demonstra que o Brasil teve de ceder, perdendo força no agrupamento”, acrescenta.
Sobre a atuação do NDB no Brasil, Mielniczuk alerta que, por conta de problemas relacionados ao cargo de diretor do Brasil na instituição (após o impeachment de Dilma, houve uma crise envolvendo a remoção do então vice-presidente Paulo Nogueira Batista Jr. como representante do Brasil), o país perdeu protagonismo. “O impasse que se criou nesta cúpula, sobre a incorporação de novos sócios ao banco, algo previsto desde sua criação, e a decisão de deixar as coisas temporariamente como estão indicam que avanços significativos não ocorreram”, sustenta.
A sinalização de maior cooperação com a China é positiva, conforme André Cunha, professor de Economia e Relações Internacionais da UFRGS. “A China é a segunda economia do mundo. Produz um quinto do que é físico no planeta. E disputa liderança em algumas áreas da tecnologia, como o 5G, em telecomunicações”, sublinha. O Brasil pode tirar uma boa lição disso, no entender do professor. “Na média, entre 1996 e 2000, o Brasil investia 1% do PIB (Produto Interno Bruto) em P&D (Pesquisa e Desenvolvimento), enquanto a China destinava 0,7%. No período 2012-2016, o Brasil ficou em 1,2% e a China passou dos 2%. Por ano, os chineses aportam US$ 168 bilhões em média, e o Brasil, US$ 29 bilhões”, compara. “O país precisa investir mais, e pode ganhar com acordos de cooperação tecnológica”, diz.
Competitividade – Cunha alerta para as peculiaridades da parceria comercial com a China. “Os chineses são nosso principal parceiro, mas exportamos produtos básicos. De bens manufaturados, a exportação foi de US$ 1 bilhão no ano passado. Para a Argentina em crise, foram US$ 13 bilhões em bens industriais de valor. Quando o ministro Guedes, anuncia livre-comércio, coloca o setor produtivo em polvorosa. Não só pela baixa competitividade do Brasil frente à China. É que o país consegue ser competitivo só com os vizinhos do Mercosul. E, na prática, não pode reduzir as tarifas externas sozinho, somente por meio do bloco do Cone Sul. Uma medida como essa anunciada por Guedes pode desmontar uma alavanca de exportação”, considera. “Além disso, é evidente que o Brasil vai ter dificuldades num mundo em que o comércio mundial está estagnado.”
Presidente da Câmara de Comércio Exterior da Federação das Indústrias do Estado de Santa Catarina (Fiesc), Maria Tereza Bustamante explica que, pontualmente, só pode haver acordo Mercosul-China, porque o Brasil não pode conduzir uma negociação bilateral. “Ninguém é contra a abertura comercial, mas isso demanda colocar em cima da mesa produtos e tratamentos tarifários”, defende. Caso se concretize um acordo desses, passando por cima do Mercosul, a especialista ressalta que deve haver diálogo com os setores produtivos, para identificar as contrapartidas. “Qualquer acordo contempla outras variáveis, não são só tarifas. São regras de origem regulatória, de meio ambiente, de segurança, de desenvolvimento econômico e social e de tratamento para pequenas e microempresas. Isso leva tempo”, acrescenta.