No pequeno território indígena de Guna Yala, na costa leste do Panamá, uma próspera comunidade de ‘terceiro gênero’ está desafiando estereótipos – e venerando mulheres.
Por BBC
Enquanto nossa velha e frágil canoa desliza sem muito esforço sobre as águas calmas do Caribe, fico com a sensação impressionante de que acabamos de chegar ao paraíso. Espalhadas pelas águas azul-turquesa, as pequenas ilhas de areia branca e brilhante, cobertas de palmeiras e cocos verdes, parecem perfeitas demais para serem reais.
É a Guna Yala, também conhecida como San Blas: um arquipélago na costa leste do Panamá com mais de 300 ilhas, das quais 49 são habitadas pelo povo indígena Guna. Os 50 mil gunas ainda vivem como seus ancestrais: em pequenos barracos de madeira cobertos por folhas de palmeira, com troncos queimando nas lareiras e redes como o único objeto de seu mobiliário.
Guna Yala é extraordinária em muitos aspectos: é um território indígena autônomo, e sua bandeira ostenta uma suástica preta virada para o lado esquerdo, que representa as quatro direções e a criação do mundo. Mas talvez a tradição mais curiosa do arquipélago seja sua natural igualdade de gênero – e completa tolerância, se não celebração, da fluidez de gênero.
“Minha mãe me ensinou a fazer essas lindas ‘molas’, nossas roupas bordadas tradicionais”, diz Lisa, mostrando-me seu incrível bordado. “Algumas delas representam pássaros e animais, mas outras são muito poderosas – vão protegê-lo de maus espíritos”, acrescentou, com um sorriso suave.
Não vejo nada de estranho em Lisa. Assim como muitas outras mulheres da tribo, ela está sentada em sua pequena canoa e vende seus belos artesanatos a turistas.
Mas Lisa é do sexo masculino. Em uma sociedade onde as mulheres são as principais distribuidoras de alimentos, proprietárias e tomadoras de decisão, os meninos podem optar por se tornar Omeggid, literalmente “como uma mulher”, o agindo e trabalhando como outras mulheres na comunidade.
Terceiro gênero
Esse “terceiro gênero” é um fenômeno completamente normal nas ilhas. Se um menino começa a mostrar uma tendência de agir “de forma feminina”, a família naturalmente aceita e permite que ele cresça como tal.
Muitas vezes, omeggid vai aprender uma habilidade que normalmente é associada a mulheres; por exemplo, a maioria dos omeggid que vivem nas ilhas se tornam mestres na confecção das “molas” mais complexas.
Diego Madi Dias, antropólogo e pós-doutorando da Universidade de São Paulo (USP), viveu entre os Guna por mais de dois anos e viu em primeira mão que as poderosas figuras matriarcais daquela cultura são uma grande influência para os homens.
“Os Guna me ensinaram que as crianças deveriam ter autonomia suficiente, pois seu ‘eu’ vem do coração, de dentro, e começa a se manifestar cedo. Então, se um menino começa a mostrar uma tendência a ser transexual, ele não é impedido de ser ele mesmo”, disse ele.
Nandín Solís García, uma educadora de saúde transgênera e ativista de direitos LGBT na Cidade do Panamá, originalmente das comunidades de Guna Yala de Aggwanusadub e Yandub, me disse que crescer nesse ambiente não foi difícil porque sempre teve o apoio da família, dos amigos e da comunidade.
São principalmente os homens que se tornam mulheres transexuais – o contrário é extremamente raro, mas também igualmente aceito, explica ela. “Historicamente, sempre houve pessoas trans entre os Guna”, diz ela.
De fato, ser omeggid em Guna Yala tem origem na mitologia. “Há importantes histórias sobre os líderes originais que trouxeram as tradições, regras e diretrizes para o povo Guna: um homem chamado Ibeorgun, sua irmã Gigadyriai e seu irmão mais novo, Wigudun – uma figura que pertence ao que chamamos de ‘terceiro gênero'”, diz Dias, explicando que Wigudun é uma figura tanto feminina quanto masculina.
Mulheres no comando
Andando pelas ruas da Ilha Crab, uma das maiores comunidades na área turística de Guna Yala, noto mulheres em todos os lugares. Vestidas com roupas tradicionais lindamente bordadas, elas estão trabalhando em seus artesanatos, cuidando de pequenas lojas e vendendo alimentos e bebidas.
Ao contrário de muitos outros países da América Central, as mulheres Guna parecem mais extrovertidas e tagarelas: começar uma conversa aqui é muito mais fácil do que nas ruas das aldeias guatemaltecas ou nicaraguenses.
De acordo com David, meu guia na Ilha Crab, as mulheres em Guna Yala desfrutam de um status elevado. Um casamento tradicional de Guna inclui uma abdução cerimonial do noivo, não da noiva, e quando um jovem é casado, ele se muda para a casa da noiva.
Daquele momento em diante, seu trabalho pertence à família da mulher, e é ela quem decide se o marido pode compartilhar seus peixes, cocos ou bananas com seus próprios pais ou irmãos.
Até mesmo a festa aqui, explica David, é feita para homenagear as mulheres: as três celebrações mais importantes nas ilhas Guna Yala são o nascimento de uma menina, sua puberdade e seu casamento. Toda a comunidade se reúne para beber chicha, uma cerveja local forte, para celebrar a juventude e a feminilidade.
Durante a celebração da puberdade, o septo de uma menina é perfurado e adornado com um anel de ouro. “O ouro é um tesouro, então, as mulheres usam o ouro para mostrar o quão preciosas e valiosas são”, uma idosa me diz, apontando para seu próprio “piercing” no nariz.
Embora os homens tradicionalmente se tornem pescadores, caçadores, fazendeiros ou caciques, o trabalho das mulheres é considerado tão ou mais importante. Com o turismo em ascensão, os Guna estão começando a ganhar dinheiro com outras fontes além de seus comércios ancestrais de coleta de coco, mergulho para pesca, lagosta e agricultura.
As mulheres guna podem ter um rendimento substancial vendendo molas e winis detalhadamente bordados (pulseiras coloridas feitas de contas de vidro). Uma mola é normalmente vendida por um valor entre US$ 30 e US$ 50 (R$ 115 e R$ 191), enquanto um homem só ganhará US$ 20 (R$ 76) por um dia inteiro limpando o casco de um veleiro visitante.
“Não diria que Guna é uma matriarcado, porque enquanto as mulheres tomam todas as decisões domésticas, raramente são parlamentares ou caciques. No entanto, um aspecto sobre a cultura Guna é que não há hierarquia do valor do trabalho. A pesca e a caça são consideradas trabalho, mas também é cozinhar ou cuidar dos filhos: os gunas não consideram o trabalho das mulheres como um ‘trabalho menor’, como às vezes ainda fazemos no Ocidente. Mas como é o homem que se muda para a casa da mulher e a mulher se torna a provedora de alimentos, acho que a masculinidade às vezes é vista como algo difícil de se alcançar”, diz Dias.
David admite que seu casamento foi arranjado pelos pais dele e de sua esposa, e que sua opinião não é levada muito em conta quando o assunto é a propriedade ou o compartilhamento de comida em sua casa. “Minha esposa decide. As mulheres sempre decidem”, diz ele, sorrindo, antes de se apressar para preparar a chicha. Hoje, sua filha chega à puberdade e toda a Ilha Crab estará celebrando.
Mas enquanto as mulheres têm um papel definido na sociedade Guna, o Omeggid às vezes não. “À medida que mais e mais gunas entram em contato com a ocidentalização, infelizmente, começamos a adotar as práticas discriminatórias em relação à diversidade, em relação às pessoas LGBTQ”, diz Garcia.
De acordo com Garcia, muitos Omeggid deixam Guna Yala para a Cidade do Panamá, em busca de trabalho ou estudo. E enquanto os sonhos se tornam realidade para alguns, para outros, é o início do pesadelo.
“Temos um grande problema com o HIV na comunidade. Em Guna Yala não há educação sexual, e as pessoas simplesmente não sabem sobre doenças sexualmente transmissíveis. Como resultado, muitos [homens e] Omeggid se infectam com o HIV nas cidades e, sem saber, trazem a doença para a comunidade quando voltam para casa. Wigudun Galu [uma organização não governamental] está trabalhando para prevenir a infecção pelo HIV e oferecer educação sexual à comunidade de Omeggid “, diz ela.
Mas, apesar disso, os Omeggid que ficam em Guna Yala estão prosperando. Tanto nas grandes comunidades insulares quanto nas pequenas ilhotas familiares, elas são onipresentes. Jovens Omeggid com cabelos compridos aprendem a fazer bordados com suas mães, e os mais velhos vendem molas ou atuam como guias e tradutores. Eles são tratados como iguais tanto por suas famílias quanto pela comunidade.
“Acho que, em vez de apenas descrever como os povos indígenas são ou como eles vivem, a antropologia talvez nos ajude a examinar nossas próprias tradições. Ao longo das eras, através de continentes e culturas, a fluidez de gênero e o conceito de um terceiro gênero consistentemente reaparecem: as hijras na Índia; o Meti no Nepal; o Fa’afafine na Samoa; as pessoas ‘de dois espíritos’ na América do Norte. Eles não são a exceção, nós somos. A tradição ocidental construiu uma mitologia científica sobre o binarismo de gênero. E parece, no final das contas, que o gênero não é tanto sobre biologia, hormônios e ciência, mas também sobre a expressão de si mesmo e um modo pessoal e particular de estar no mundo “, diz Dias.
Enquanto Lisa empurra nosso veleiro, sua pequena canoa no mar azul cintilante, não posso deixar de pensar que Guna Yala parece um mundo maravilhosamente alternativo de paz, tolerância e compreensão – e que poderíamos aprender muito com essa minúscula comunidade no Caribe.